sexta-feira, 31 de outubro de 2014

VIAGEM PARA O AB4

Depois da recruta e da especialidade chegou a hora de rumar até Angola com destino ao AB4. Fiquei colocado na Base Aérea Nº.2 – Ota, onde dei apoio na secretaria do G.I.T.E.
Após os preparativos e os dez dias de férias para as despedidas da família, os beijinhos, abraços e choros dos mais velhos que lembravam a ida para a guerra, recebi a guia de marcha para o AB1 Portela (camarata de adidos onde esperei o dia do embarque). Na espera entre idas a casa da família e farras com a malta que estava na mesma situação, fazíamos alguns passeios pelo Parque Mayer, Bairro Alto, Parque Eduardo VII, Marquês de Pombal, Avenida, lojas da Baixa (Lanalgo), etc. As fardas que usávamos eram as cremes. Estas eram o orgulho dos especialistas e muito apreciadas pelas meninas da altura. Mas passado pouco tempo foram substituídas pelas actuais fardas azuis.

Depois de várias marcações de reserva de embarque e adiamentos lá chegou o dia do embarque. No dia 23 de Janeiro de 1968, pelas nove horas da manhã, entrámos no DC6 da FAP e ordenaram-nos apertar os cintos. Às dez horas levantamos voo (baptismo de voo). Começamos a rolar na pista, o avião vibrava e aquele ronco dos motores parecia o bater das asas de uma grande águia a querer voar.      Quando começamos a flutuar apareceram as primeiras sensações no estômago, aquele vazio, a sensação do primeiro voo. Íamos iniciar a nossa viagem.
Passamos sobre Lisboa com as casas a passarem muito depressa, como que a fugirem dos nossos pés. Ao mesmo tempo que subíamos as casas ficavam cada vez mais pequenas. Da vista espectacular lá do ar destacava-se a Ponte Salazar, hoje chamada Ponte 25 de Abril. Estava com o coração apertado por ser o meu primeiro voo, mas também pela vista deslumbrante. Enfim lá ia eu para o desconhecido, à descoberta de novas terras.
Sobrevoamos a costa portuguesa até ao Algarve e apareceu a costa de África. O deserto à esquerda e no mar alguns barcos que pareciam formigas no meio do oceano. Pelas dezassete horas aterrámos na Guiné para abastecer. O avião ao aproximar-se só se via uma imensidão de árvores e água. A pista era ladeada por árvores, palmeiras e, é claro, por nativos da região que caminhavam pelos trilhos no exterior da vedação do aeroporto. O trem de aterragem baixou e logo tocou no chão, para mim uma novidade as palmas após a boa aterragem, rolámos pista fora até ao estacionamento.
Ao abrirem-se as portas o calor invadiu o interior do avião. Um autêntico forno que nos obrigou a tirar a roupa extra que trazíamos vestida. Quando embarcámos em Lisboa estávamos no Inverno, agora estávamos em pleno coração de África.
Desembarcamos e lá estava a malta da Base à nossa espera para ver a massaricada que ia para Angola. Algumas caras conhecidas da recruta e dos cursos anteriores e até dos tempos de escola que já li estavam a cumprir a sua missão. Depois dos cumprimentos e de saberem para onde íamos, disseram que tínhamos sorte, pois ali era um inferno, muito calor e humidade, para além de alguns bombardeamentos, e nós sem saber o que nos esperava. Depois fomos ao bar dos especialistas beber uma bejeca para refrescarmos a garganta, foi a primeira vez que vi uma cerveja sagres de ½ litro. De seguida despedimo-nos e lá fomos nós rumo a Angola.
Levantámos voo às dezasseis horas da Base Aérea N.º12 Bissalanca (como a malta lhe chamava) ficava para trás, assim como as árvores e as lagoas pantanosas, à medida que íamos subindo no ar.
Rapidamente começou a anoitecer, uns blás blás com os companheiros de viagem e a fome começava a chegar. Não nos deram qualquer comer, nem sequer nos informaram que não o iam dar. O que me valeu foram as sandes que levei, mas que à mesma me souberam a pouco.
Com a continuação do voo começou o frio da noite que àquelas alturas era pior que o que estava em Lisboa quando partimos. Conclusão, toda a roupa que levávamos era pouca. O frio era tanto que não deixava dormir. Os sargentos e oficiais tinham direito a uma manta, mas a cabiçada não tinha direito a nada.
Foi nesta viagem que tive o primeiro contacto com o sargento Relvas, julgo que a sua especialidade era abastecimento. Falou-me um pouco de África, era a segunda ou terceira vez que estava neste continente em comissão. Tentou consolar a minha solidão, estava a sentir-me sozinho e a pensar que ia estar longe da minha família durante dois anos.
Por volta da meia-noite apercebi-me de um burburinho no avião. Um civil, jardineiro das OGMA que ia trabalhar na Base Aérea N.º 9 - Luanda, apercebeu-se de uma chama muito viva (parecia a chama de um maçarico gigante) que saia dos escapes dos motores. A chama tinha cerca de três ou quatro metros. Isto para ele significou que o motor estava a arder. Chamou o assistente de voo. Este ao espreitar pela janela explicou ao homem que aquilo era normal, durante o dia a combustão do motor não é visível devido à claridade, mas à noite a chama produzida tornava-se visível. Confesso que ao espreitar logo à priori fiquei um bocado alarmado com a situação, mas depois da explicação fiquei mais descansado, ao contrário do homem que fez o resto da sua viagem (até Luanda) sem pregar olho. A preocupação desenhada no rosto só desapareceu quando pôs os pés em terra.
Aproximava-se a chegada, eram quase cinco da manhã, o dia já a clarear, a aurora da manhã a despontar no céu muito alaranjado com aquelas cores fortes de África. Começava-se a ver Luanda. O trem de aterragem começou a baixar, os flaps a inclinarem-se e foi dada a ordem de apertar os cintos. A malta toda espreitou pelas escotilhas e fiquei deslumbrado com a baía de Luanda. Sobrevoávamos o mar com a baia à nossa direita. Sobre Luanda destacou-se no meio o edifício BCA. Direitos à pista do aeroporto de Luanda, o toque das rodas do trem na pista e uma bela aterragem (surgiram novamente as palminhas). Desembarcamos e fomos transportados num machimbombo para a Base Aérea N.º 9, onde tomámos o pequeno-almoço. Depois rumámos até ao Comando da Região Aérea para sabermos qual era o nosso destino.
Neste curto espaço de tempo senti-me estranho, nem sei explicar, o cheiro, o odor, o calor, a vegetação...enfim era África, algo mais espectacular do que me tinham contado. Agora via e sentia tudo, era diferente do que tinha imaginado. Até fiquei de boca aberta com aquelas árvores espectaculares, os embondeiros, com um tronco enorme que nunca tinha visto na minha vida, nem sequer imaginado. Diziam que eram necessários nove homens de mãos dadas para o abraçar.
Depois da apresentação das guias de marcha realizou-se a leitura dos destinos. Alguns foram destacados para a BA9 (Luanda), outros para o AB3 (Negage) e outros ainda para o AB4 (Henrique de Carvalho), onde eu estava incluído.
Passado algum tempo surgiram as “bocas” sobre Henrique de Carvalho: “aquilo é um deserto, é o fim do mundo”. Fiquei desanimado, pois Luanda era espectacular. Mas depressa passou a magoa e enquanto esperava pela viagem até o AB4, bebi umas cervejinhas e fiz algumas viagens pela cidade. Entre estas estava a ida ao BO (Bairro Operário) feita para conhecer aquelas lides e que era uma praxe.
Após quase uma semana surgiu a viagem para Henrique de Carvalho. Às sete da manhã estava no hangar à espera do embarque, com a minha mala de cartão. O cabo dos transportes fez a chamada para o embarque e lá fomos nós para o avião (um NordAtlas). Sentámo-nos nos bancos de lona dispostos ao longo da fuselagem e no meio encontrava-se a carga que ia abastecer a base e quartéis do exército. O barulho dos motores era ensurdecedor, tudo vibrava, o avião abanicava de um lado para o outro e saltitava pista fora, enquanto que nós estávamos caladinhos. Pensei “será que isto levanta voo”, era uma nova sensação.
Lá conseguiu subir até aos céus, a vista sobre Luanda era oposta à do voo anterior. Agora víamos os bairros mais pobres e os mosseques nos arredores da cidade. Ganhámos a altura de cruzeiro e viu-se a neblina serrada das manhãs africanas (um manto branco). Por vezes o avião estremecia com a turbulência de um poço de ar e o meu estômago parecia saltar. Alguém que não aguentava esta agitação fazia saltar a carga ao mar, como se costuma dizer, e de seguida aquele cheiro empestava o avião e incomodava os restantes passageiros.
Passado algum tempo começou-se a ver lá ao fundo o arvoredo e o serpentear dos rios com curvas e contra curvas rodopiando pelo meio da selva. Após duas horas e meia estávamos com Henrique de Carvalho à vista, surgindo as espreitadelas pelas pequenas janelas circulares. Víamos a cidade, as sanzalas com milhares de cubatas e a pista envolvida pelo arvoredo. Mais próximos do chão, observei o capim com alguns metros de altura, aquilo para mim era erva-gigante.
Estávamos no AB4 com o carro dos bombeiros a acompanhar o avião até ao estacionamento. A malta da base encontrava-se numa grande euforia ao ver chegar o Nord com os maçaricos, o correio, os aerogramas e as novidades da metrópole.
Lá estava eu no AB4 só e desolado, sem saber o que pensar, de facto era um ermo no meio da savana.
  
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sexta-feira, 24 de outubro de 2014

HISTÓRIA VIVIDA - AB4 1968

A minha especialidade era Mecânico de Rádio. Nesse tempo (creio que no ano de 1968) os mecânicos de rádio estavam subordinados a uma escala de serviço para prestar serviços na Unidade - aliás, o que acontecia em todas as outras especialidades  -  e num desses  famigerados serviços que me calhara em sorte, era um  mais ou menos assim chamado : Mecânico de Rádio à Linha da Frente.
Linha da frente
Dentre as várias tarefas que tinha que desempenhar,  a mais rotineira e importante, era efectuar logo de manhã, por volta das 7,30 horas, um teste de rádio com a Torre de Controlo, de todos os aviões que estavam no táxi-way já aprontados para partirem, que  só esperavam a chegada dos pilotos vindos da cidade de Henrique de Carvalho onde quase todos residiam.
Naquela fatídica manhã de um dia cinzento e chuvoso, fazia um frio de rachar, e lembro-me de estar todo enrolado num casaco de cabedal com gola de pele de coelho que nos tinha sido distribuído, mas mesmo assim tinha as mãos enregeladas e pecas. - Alô Carvalho, - alô Carvalho ... gritava eu com todas as forças de dentro da cabina do T6, aflito porque já estava em cima da hora da chegada dos pilotos e tinha descoberto à última da hora, que naquele avião, havia um equipamento avariado que teria de ser rapidamente substituído. 
- Alô Carvalho - Alô  Carvalho... não parava de gritar com todo o fôlego, para ver se - em última instância - o problema se resolveria e descomprimisse da pressão que já se avolumava à algum tempo. 
Nada disso! Digo para comigo: não há dúvidas ! Tem que ser substituído!
Comunicação com a torre
Vai daí, e na  altura em que me propunha carregar às costas o equipamento avariado e trazer pela mesma via o semelhante e em bom estado, que se encontrava nas oficina de Rádio dentro do Hangar, debaixo daquele mau tempo que se fazia sentir, quando descia a escada do avião, reparei que alguém deixara por perto   um tractor que servia para o reboque dos ditos aviões e, pimba! No meu pequenino cérebro parece que se acendeu uma lampadazinha e  se bem o pensei, melhor o fiz. Digo para mim e para o meu boné :  " caíste do céu tractorzinho, pois já tenho o meu problema resolvido ". Peguei no equipamento, pu-lo em cima do tractor e " ala que se faz tarde ", por ali fora, numa correria desabrida, rumei às instalações da minha Sessão para efectuar a troca.
Neste ponto tem que se dizer que, além de não saber conduzir muito bem, (tinha-o feito umas duas ou três vezes e no continente), não tinha carta de condução e tampouco estaria autorizado  para sequer mexer no tractor,  quanto mais para conduzir com ele...
O trator
Entrei no hangar numa velocidade exagerada  e provavelmente com alguns salamaleques à mistura, frutos duma vivacidade e alegria que me eram peculiares naqueles 22 anos de idade. Por aquela  hora, já o hangar estava a ficar cheio de gente do material aéreo, que ia  tomando as suas posições em cima dos aviões que se encontravam para revisão em cima de calços, e com os respectivos revestimentos dos motores e allairons postos muito " arrumadinhos " junto à parede lateral do hangar, de forma a serem novamente colocados aquando do fim das citadas revisões. Aviões suspensos por calços! Carcaças ao lado! Um abanão e zás! - Nem pensar era bom!
Pois bem, para mal dos meus pecados, descontrolei-me completamente e : Pum! Trás , Prack! Prerrrrrrrrrr! Poffff!   Enfim, os sons todos do catálogo das desgraças!
Passei por cima daquela coisa toda, para espanto geral dos colegas que estavam em cima e em baixo dos aviões,  e para culminar a tragédia, passei ao lado de um dos calços, e fui embater com grande estrondo na parede do hangar, fazendo um buracão, que quase se via a chuva a cair cá dentro!
Mãezinha...! Valha-me Deus !...  Uff! Toda a gente me acudiu. Lembro-me de, na minha ingenuidade, só ter perguntado: - E agora ? - Agora!,  dizia um mais expedito. - Agora estás fodido! Esta foi a primeira vez que senti que o homem não tinha sido feito completo pelo Criador. Faltaram-me as asas, que tanto precisava para sair dali...
Completamente atarantado e por sugestão dum colega, fui imediatamente junto de uma das carrinhas que trazia o pessoal militar da cidade e duma forma mais ou menos idêntica como o Egas Moniz foi ao rei de Espanha, fui falar com um Sargento-Ajudante (de quem não me lembro o nome), contei-lhe o sucedido e ele perguntou-me se os estragos tinham sido grandes.. Umas amolgadelazitas, disse eu!
Logo que toda a gente ficou a saber do sucedido, Jesus! Maria ! O que praí vai... - Que reboliço que se gerou naquele hangar!
Toda a gente que falava comigo dava um palpite e alguns tinham mesmo a intenção de puxar imediatamente a " figurada " corda do Egas ...
Hangar de manutenção
Chegou o Tenente Capela, meu chefe de Secção, um homem porreiro mas temperamental que em face do exposto, começou a desatar " biqueiros "  em tudo que mexesse ou não.
Chegou o Sargento-Ajudante Roldão, meu chefe imediato que perdeu a calma que sempre aparentou ter e " prendeu-me " na oficina para o que desse e viesse;
Chegou por fim o Capitão Acabado. Bem esse é que quis mesmo acabar comigo...
Já toda a gente congeminava  em grupinhos: - O gajo está fodido! Vai apanhar 20 dias de prisão disciplinar agravada! Pum! - Morri! Que tormento, meu Deus, para um jovem de 22 anos que, sem contribuir deliberadamente para criar todo este imbróglio, se via dum momento para o outro nos píncaros da desgraça, mau grado ser uma cabeça de alho chocho... Não sei se encomendei a alma ao Criador, mas ele não aceitou e provavelmente mandou-ma de volta para ter que pagar por aquilo que fiz! Assim Seja!
Salto alguns pormenores para dizer que uma angústia tão amarga se apossou de mim, que fiquei daí para a frente num estado absolutamente pungente que nem o choro convulsivo conseguia resolver o problema. Tinha dado um " nó na alma " e não sabia mais nada... Fiquei - de imediato - castigado de não poder sair da Base, enquanto nos dias subsequentes se tratava da minha sorte... Não comia. Não dormia. Não falava. Não nada... Sentava-me algumas vezes ao sol fora do hangar, sozinho, talvez... digo agora, a congeminar como pedia " levantar voo " dali. A verdade manda dizer que o meu chefe, o Tenente Capela, por tudo isto,  já passara a ter por mim alguma complacência e preocupação e provavelmente também terá contribuído para o desfecho do caso. Bem - Haja !  
Ainda hoje estou desconfiado que, o Criador não terá ficado indiferente ao meu caso. Talvez duma forma velada mandou-me um Anjo-da-Guarda, que foi quem me valeu neste problema todo.  
Hoje passados quase 40 anos, os meus olhos enchem-se de lágrimas de emoção e gratidão ao recordar a generosidade e a bondade do homem que resolveu o meu problema duma forma reservada, sem alaridos e com uma dignidade, que confesso a quem ficarei eternamente grato. Um homem que soube ver bem a desgraça por que passou um mancebo desgovernado e quis ser a mão amiga do pai que me faltou na altura.
Cap. Maia
Estou a vergar-me em preito de homenagem e saudade ao Sr. Capitão MAIA, comandante da Esquadrilha de Abastecimento, que com a sua alta hombridade não quis e não permitiu que aquela " florzinha " fosse esmigalhada. No altar do meu coração ainda floresce a gratidão à sua memória. Não sei se é vivo ou não! Para mim está sempre presente.
Do resto, pouco mais há a acrescentar. Serão pormenores que me reservo de contar por a " noite já ir alta "... Bom, resta dizer que de facto, o castigo final ficou-se apenas pelos 30 dias de dispensas cortadas. Ora vejam lá! Por estas coisas todas parece que ainda há Deus!

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sexta-feira, 17 de outubro de 2014

SALSICHAS TROPICAIS

Messe dos Especialistas do AB4

Para quem não fez o serviço militar e não andou por África, é difícil compreender esta coisa tão simples como sentarmo-nos à mesa e comermos com gosto. 
Self-service do
AM 44 Luso
A Força Aérea, era tida como a Arma mais rica do sistema de defesa, e se nos abstivermos das condições pouco mais que precárias existentes nos destacamentos (no caso concreto do Leste de Angola, todos eles na linha da frente por onde passavam todas as grandes operações militares dos três Ramos das Forças Armadas Portuguesas) até a afirmação tinha um certo fundo de verdade, não por mérito das Chefias da FAP, mas mais por demérito dos restantes Ramos Militares.
Vem tudo isto a propósito da diferença abissal do "rancho" servido nas Bases proveniente das cantinas da Força Aérea, e dos "alimentos" fornecidos pelo Exército aos Especialistas e Pilotos nos destacamentos mais isolados. Culinária, não era disciplina ensinada na recruta, mas uma utilização mais racional dos alimentos disponíveis não teria sido uma perda de tempo e ganhar-se-ia em bem estar, mais empenho e satisfação do pessoal. 
Em longos períodos de forçada má nutrição, vinha ao de cima a tradicional capacidade de desenrasque dos Portugueses, depois de andarmos a comer latas de pêssego em calda durante dias, era necessário e urgente variar a "dieta alimentar". No Cazombo existia um cozinheiro, em Gago Coutinho e Neriquinha tínhamos que gramar a "ementa verde" como não existia uma delegação da manutenção militar, qualquer cantina proporcionava as tradicionais conservas de peixe e carne. 
Foi num rasgo gastronómico genial que a receita das salsichas tropicais foi inventada, experimentada e aperfeiçoada até à exaustão, prato simples, com alto teor calórico, e com ingredientes de fácil manuseamento até para nós que de trens de cozinha o que mais utilizávamos era o abre-latas.
Da receita base constava "por cabeça", uma lata de salsichas, variando o número e o tamanho destas consoante a fome dos comensais, uma lata de feijão encarnado, um ovo, uma cebola pequena, dois dentes de alho médios, sal, colorau, azeite e piripiri a gosto, (daí o tropicais). Num tacho introduzia-se a cebola e o alho picados, um fio de azeite suficiente para o refugado e parte do feijão para criar o molho, refugada a mistura, juntavam-se as salsichas cortadas em bocados a gosto, o feijão, e o ovo cozido à parte, migado miúdo, acertava-se o sal e aguardava-se que o feijão se envolvesse com o ovo e as salsichas formando uma pasta homogénea, apimentada a gosto com o gindungo ou piripiri. 
Quando inventei o acepipe, ninguém ligou à actividade frenética que se passava na copa, havia estômagos para tudo e nem toda a gente era tão má boca como eu, mas quando saí em direcção à mesa e o cheirinho do feijão atingiu as narinas dos meus companheiros de infortúnio, toda a gente quis ensopar o pão no molho, e rapidamente fiquei sem almoço, já que há sopas e "sopas".
Aprovada a receita, foi sendo enriquecida com outros ingredientes, qual "sopa de pedra", mas a original foi a que obteve mais impacto, e só nos perguntávamos como era possível que dois ingredientes (salsichas e feijão) que sozinhos comíamos a contragosto pudessem juntos ser tão apetitosos.

Gago Coutinho, 1973

Escrito por:
JFA OPC


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

ACIDENTE FATAL NO CHITADO - AVIÃO DAKOTA 6154


Chitado - Cunene (sul de Angola) - 10 de Novembro de 1961

Pista do Chitado
O Dakota 6154 passou por cima da pista a baixa altitude. 
Não ia aterrar. Levava os motores na potência de cruzeiro, o trem recolhido e bloqueado. No final da pista iniciou uma volta pranchada de quase 90º para a esquerda, em sentido contrário. A meio da volta, a ponta da asa bateu numa árvore que sobressaía das outras cerca de 15 metros. O avião rodou sobre si mesmo, ficou em voo invertido, caiu a seguir, com a cabine ao contrário.
Incendiou-se imediatamente.
O voo era uma viagem de estudo de oficiais superiores ao Sul do território de Angola.
Entre eles o Segundo Comandante da Segunda Região Aérea.
A baixa altitude seria para avaliar melhor as condições no terreno.
O comandante do aparelho terá menosprezado a temperatura do ar, 40º.C - o que terá feito o aparelho perder altitude na volta - e a turbulência resultante da hora, cerca do meio dia.
A tripulação era constituída pelo Cap. Pil. Nav. Francisco Fernandes de Cravalho, comandante de bordo; Ten. Pil. Nav. José Manuel Boavida Chagas; Alf. Pil. Av. Mil. Arnaldo Luzia da Silva; 1º. Sar. Rad. Teleg. Domingos de Oliveira Neiva; 2º. Sar. MMA António Rodrigues; 1º. Cabo MMA Manuel Freire Martins.
Além dos tripulantes, pereceram no acidente:
Monumento aos mortos do Chitado
Gen. Carlos Miguel Lopes da Silva Freire, Comandante da 3ª. Região Militar; Brig. Pil. Av. José da Silva Correia, Segundo Comandante da 2ª. Região Aérea; TCor. CMM João Manuel de Oliveira Marques, e o filho , civil, João Manuel de Oliveira Marques; TCor. Art. João Horta de Galvão Ferreira; TCor. Inf. José Eugénio Borges; TCor. Eng. Luís Jorge Tedeschi Seabra; Maj. CEM Carlos Mota de Oliveira; Maj. CEM Jesofete Monteiro de Figueiredo; Cap. Inf. António André Dias Pombo e Costa; e ainda os civis, Frederico de Vilhena Luís Serrano, secretário do Governador do distrito da Huila; e fotógrafo Maia, de Sá da Bandeira.

O relato da peritagem e das testemunhas do acidente. Eu não vi. Assisti às cerimónias fúnebres e à partida das dezoito urnas na Base Aérea 9 para a Metrópole.
"Bordo ataque" Major-general Pil. Av. José Duarte Krus Abecasis
Vítimas mortais: dois Oficiais Generais
– General Carlos Silva Freire, Comandante Militar de Angola;
– Brigadeiro José Silva Correia, 2º Comandante da 2ª Região Aérea;
– Oficiais dos Estados Maiores respectivos, Sargentos e cabos da tripulação.
– Total – 18 mortos.
Comandante do avião – Capitão Francisco Fernandes de Carvalho;
Co-piloto – Tenente Chagas.
Segundo as conclusões do inquérito da Secção de Segurança de Voo.
- Responsável principal: O Co-piloto.
- Co-responsáveis: Comandante do avião.
- Comandante do Grupo Operacional da Base Aérea Nº 9 – Luanda.

Juizo ampliativo:
O co-piloto executou manobra de volta apertada em voo rasante, no limite da velocidade, provocando uma perda, sem recurso, por não dispor de altura suficiente para retomar o controlo, percutindo com o solo.
O Comandante do Avião pelo erro gravíssimo de confiar a pilotagem a um co-piloto inexperiente, retirando-se para a cabine de passageiros, em fase crítica de um voo de reconhecimento táctico.
O Comandante do Grupo Operacional da Base Aérea Nº 9, ao nomear a tripulação para uma missão de extrema responsabilidade. Ainda que o 1º. Piloto tivesse a maior qualificação (aceito que não disporia de melhor na Base) com centenas de horas em comando de “DAKOTA”, a inexperiência do co-piloto tornava proibitiva tal nomeação.



NOTA TÉCNICA
O avião “C 47 DAKOTA”, devido a particularidades do perfil aerodinâmico das pontas das asas, perdia subitamente a sustentação em manobras de volta apertada, perto da velocidade de perda. Esta condição era, por vezes, negligenciada na instrução de voo a pilotos, omitindo as demonstrações compulsórias, em altitude de segurança. (acima de 1 500 metros).

Texto publicado por especial deferência de Aniceto Carvalho
e transcrito do seu site "Aviação Portuguesa" http://aerodino.no.sapo.pt/index.html



sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A MADRINHA DE "GUERRA"


Como bem se devem recordar, ou talvez não, era muito vulgar todos os rapazes que iam para a guerra (Ultramar) e não tinham ou não deixavam ao partir uma namorada, as revistas da época dispensavam uma página, onde: as raparigas se disponibilizavam para serem Madrinhas de Guerra, colocando os seus endereços.
Os rapazes ou respondiam, ou colocavam também os seus, na expectativa de um contacto.
É neste ping-pong, que um nosso camarada recebe uma carta de uma candidata a Madrinha de Guerra, apresentando-se e descrevendo-se, não sem terminar dizendo: - Gosto de receber, cartas grandes e pesadas.
O candidato a afilhado (que nunca mais soube nada dele “ com bastante pena minha “ e que se ler estas linhas, deve-se recordar a veracidade das mesmas) com um grande espírito e astúcia, que lhe eram peculiares, para lá da inteligência natural, fez o seguinte:
Foi à Cantina (local de venda de todo o género de produtos, desde os de higiene até aos alimentares) e compra um bloco de papel de carta e envelope dos maiores, para responder à Madrinha.
Chegado à camarata, pega no bloco e a primeira coisa que faz, é arrancar a capa e a contracapa do dito bloco.
Pega uma esferográfica e na primeira folha (do bloco) escreveu:
Henrique de Carvalho, ..?.. / ..?.. / 1968, Querida Madrinha.
Na última folha escreveu:
aqui vai uma carta grande e pesada, como gostas. 
Assinatura
Enquanto lá continuámos juntos (pois ele era mais antigo do que eu, e terminou o tempo primeiro como é lógico) não recebeu resposta, à “carta grande e pesada”.
Ainda tenho esperança de um dia o abraçar. Já fizemos vários esforços na tentativa de o localizar, mas não deu certo.
Amigo, se acaso leres estas linhas, diz algo. 
UM ABRAÇO
           
 escrito por: