sexta-feira, 28 de novembro de 2014

O AB4 E O 1º. DESTACAMENTO NO CAZOMBO

Vista aérea do AB4 e de Henrique de Carvalho
Quando cheguei a H.C. em Março 1970, fiquei imediatamente impressionado com o ambiente.Quando o “barriga de ginguba” aterrou apeteceu-me quase de imediato pirar-me dali. Agora que já lá estava, as coisas pareciam-me bem piores do que me foi dito, quando dos meus dias em Luanda. Havia uma turba de indivíduos que gritavam e gesticulavam perguntando pelos seus “mikes” (substitutos). Havia quem se passeasse com um carrinho de arames e até quem tinha a mala pronta para o embarque ainda que soubesse que ainda não era o seu dia. Pensei cá para os meus botões, - cheguei ao fim do mundo - e daqui só sairei com pelo menos, mais de dois anos de comissão, o que era normal com a “lerpa”, pois havia quem já estivesse a “lerpar à mais de quatro meses, dependendo da especialidade, visto fazermos rendições individuais.Não tive problemas em me integrar no grupo pois por acaso, vim a saber também lá estava um amigo, de à muitos anos, quase infância, o meu amigo Rui Pires OPC, e que já não era nenhum maçarico, o que até permitiu que não fosse “praxado“ nesse mesmo dia, aliás, não cheguei a ser praxado, portanto a “coisa” até não corria mal.Colocado que fui no Hangar de Manutenção, para aprendizagem agora já a sério, a vida foi
Á espera do autocarro para a cidade
decorrendo, fui tomando os conhecimentos necessários, até ter ido para a “linha da frente para arranjar tarimba".
Naturalmente, como todos, as saídas para a cidade era o ponto alto do dia, onde fazíamos tudo para conhecermos as tascas, tasquinhas, ir ao cinema e ver os jogos de futebol de cinco, e, especialmente conhecermos miúdas. (Enfim, depois logo se via.)
CAZOMBO o meu 1º destacamento.Depois de 3 meses de tirocínio na manutenção e na linha da frente, no dia 22 de Julho recebo ordem de marcha para o meu 1º destacamento. Quando esse dia chega acho que é o mesmo que um piloto sente, quando pela 1º vez toma os comandos de um avião e levanta voo sozinho. É um misto de alegria e responsabilidade. Não temos ninguém connosco. Estamos sozinhos, e assim foi. Claro que estava atemorizado, era a minha primeira comissão em destacamento, isto apesar de sempre ter sido apoiado pelos meus colegas que me diziam que para o sítio para onde ia, não era mau de todo e lá vou eu. Cazombo AM43.Quando cheguei fui bem recebido por todos os camaradas e rapidamente me entrosei no grupo e no ambiente do AM.
Durante os primeiros dias de adaptação pouco conheci do Cazombo a não ser praticamente o AM e pouco mais.Certo dia, convidado por um VCC, de seu nome Sousa MMT,  de alcunha“CHILENGALENGA” (entre os nativos), para visitar uma das sanzalas, preparei-me para a primeira incursão aos Kimbos.
Claro que, como bom militar que se preze para “entrar nas linhas do inimigo”, aperaltei-me da melhor forma: camuflado, cinturão, faca de mato, (todos tínhamos uma) e ia continuar a abastecer-me quando o Sousa apareceu, olhou para mim, riu-se e com ar de reprovação disse-me que não íamos para nenhuma guerra, íamos apenas á sanzala.Ora bem, perante o ar divertido do Sousa, lá me dispus a desfazer-me dos meus argumentos bélicos e acompanhá-lo, tal como ele iria…sem nada. Assim foi. Para quem conhece África, sabe que a noite é mesmo noite, e só os mais afoitos se atreviam a entrar por aquele mato e caminhos, sem qualquer visibilidade, conduzidos apenas pelos seus sentidos de orientação, e pelos sons

O Cazombo tinha em seu redor 6 ou 7 sanzalas. Havia quem dissesse que uma delas era de “turras”, pois, de dia apenas se viam mulheres, crianças e velhos, mas que pela noite, não eram apenas estes que lá estavam. Havia já rapazes e homens feitos que apareciam.Nunca liguei, pois não me parecia possível, que com tanta vigilância, alguém se atrevesse a ir a essa sanzala. Na verdade a vigilância era nula, pelo menos da parte militar, pois não sei como era com a DGS, infiltrada que estava em todo o lado, no entanto, todos os dias as cenas eram as mesmas. À noite havia outro tipo de habitante, os chamados “turras”.Ora bem, então o “Chilengalenga” e eu, lá nos embrenhamos por aquela escuridão, (autêntica aventura). Eu é que me aventurei pois para o Sousa aquelas incursões, era o pão nosso de cada dia.Avançando pelo negro da noite, apenas com as estrelas a servirem de candeeiros, lá fomos avançando pelo trilho já muito batido.O Sousa ia falando comigo, sobre tudo e mais alguma coisa e eu nem aí estava… o meu
pensamento era apenas…. Onde estou metido! Porque me meti nisto? Estava tão bem! E assim nos fomos aproximando da sanzala dos “turras”. Quando já se viam a luz das fogueiras, comecei a ficar mais perto do Sousa, que ia desbravando o caminho, (também nunca estive longe dele), quando de repente, assim do nada, ouço uma voz, voz ao meu ouvido, voz grave e profunda que disse: Euá chindere,…moyo.Nesse momento mijei-me todo, (não na verdadeira acepção da palavra) e sem quase reação nenhuma respondi, Moyo ué.O Sousa deu um riso (qual hiena) de gozo, pois a ele não lhe disseram nada, deixando-o passar e esperando apenas por mim, naquilo que eu considerei ser o meu baptismo de visitante autorizado, àquela aldeia, abençoado pelo Chilengalenga.Fui recebido como convidado e como tal, ainda me sentei à fogueira, falei com os “caxanacaxa”, (os mais velhos) e bebi algo parecido com caxipembe, ou marufo, e fui mais “alegre “para o AM.

Nota:CHILENGALENGA, queria dizer no dialecto Quioco - o que vai e o que volta -

Eu voltava sempre
Moyo

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sexta-feira, 21 de novembro de 2014

ESQUADRA 94 - AVENTURA TERRESTRE EM CABINDA



Os helicópteros iam para o Negage, no planalto do Uíge, o centro do terrorismo, onde, de facto, de acordo com os acontecimentos, pareciam ser mais necessários. Pelo menos era do que eu pensava saber quando embarquei para o Ultramar... 
E a razão porque eu estava agora no Aeródromo Base nº.3. 
Mas não foram.
AB3 Negage
O tenente Rego de Sousa era da "velha Guarda", vinha de cabo piloto, do tempo logo a seguir aos finais da Segunda Guerra; conhecia - e se calhar tratava por tu - uma boa parte dos oficiais superiores que na altura comandavam a Segunda Região Aérea.      Cá para mim - com a importância do peso da veterania - os seus argumentos devem ter sido retumbantes: Os helicópteros ficaram para sempre na Base Aérea 9.
Uma longa Noite!
Para dar assistência ao Alouette II que se encontrava destacado em Cabinda, era a mim que calhava passar uma temporada no território. O piloto era o Assunção, um velho conhecido do tempo dos Helldivers, no Montijo. (Pelos anos 55 ou 56, uma das suas "diversões", era mergulhar o bombardeiro pela Serra da Arrábida abaixo para sair a rapar a praia; a outra, era visitar a namorada ao Algarve, às vezes, acompanhar a volta a Portugal em bicicleta. Por umas duas vezes, porque o motor tinha resolvido asnear, pouco faltou para ficarmos pelo caminho).
Logo a seguir ao Rego de Sousa, dos sargentos, o Assunção tinha sido dos primeiros pilotos a voar de Alouette II na Base Aérea 6. Durante três anos tínhamos andado por todo o lado... até aos melões, nas terras das redondezas, durante a manhã, que íamos depois comer, na parte da tarde, refastelados nas margens da Lagoa de Albufeira.
E lá íamos nós por cima do Maiombe, a transportar três engenheiros, creio que para Buco-Zau ou Miconge, bastante perto da fronteira Norte do território do enclave de Cabinda. Assunção ligou-me através da interfonia.- Não estás a ouvir uma chiadeira na embraiagem?... - perguntou ele.
Eu ia distraído, a ver a paisagem, se calhar a conjecturar onde é que ele ia "pôr o estojo" se o "fogareiro" lá atrás lhe desse para fazer das suas. Adiantei qualquer coisa sem nenhuma convicção. Logo a seguir aterrámos no destacamento militar de Belize. Passei uma inspecção minuciosa ao helicóptero, como ver através do tambor para o interior da embraiagem me ultrapassava, concluí que me parecia tudo normal. O Zé concordou...
- Mas a chiadeira vem dali. - Apontou o acessório rotativo, entre o motor e a roda livre.
Que o piloto não ia sair dali com o aparelho a voar naquele dia já eu calculava, mas que estivesse a engendrar a luminosa ideia de atravessar o Maiombe por estrada, só duma cabeça prodigiosa.
- Mas para quê?... Se vamos chegar a Cabinda altas horas da madrugada?
- Vou arranjar um transporte - resolveu ele a auscultar o entardecer. Atirou um "volto já", regressou passados uns minutos com um jipe. Além do condutor, trazia com ele um soldado de escolta armado de G-3.
Os nossos passageiros não tinham perdido tempo: Tinham desaparecido noutro jipe pelo Maiombe dentro. Protegi o helicóptero com o que tinha à mão, um quarto de hora mais tarde seguíamos na peugada dos três técnicos.
A tarde tinha caído. Se ainda não era noite fechada, não demorou muito a acender as luzes do jipe depois de entrar na floresta. Tudo bem, não era nada do outro mundo... Devíamos chegar a Cabinda por volta da meia noite. Cerca duma hora depois, de repente, sem enxergar um palmo em redor, ficámos paralisados, a tentar ver a cara uns dos outros: Tínhamos ficado sem luzes, reduzidos à chama do isqueiro do Zé em pleno coração do Maiombe.
- Não fumem... não façam nenhum barulho - recomendou o sargento-ajudante.
Com excepção duns recontros próximo da fronteira já há uns tempos, ao que constava, não havia terrorismo no enclave. Pois sim. Mas isso era o que se dizia. Para quatro gatos pingados dentro dum jipe na total escuridão e no meio do desconhecido, a conversa era diferente.
- Não passámos à pouco por uma tabuleta, num cruzamento? - perguntou o piloto.
- Passámos sim, meu ajudante - respondeu o condutor. - Era a estrada para a Chiaca.
O soldado explicou que havia lá um quartel, adiantou qual era a unidade lá estacionada.
- Veja lá se os farolins de trás funcionam... Óptimo... funcionam. Você é capaz de levar o jipe de marcha atrás até lá? - E acrescentou: - Quando estiver cansado, diga-me... eu guio, se for preciso.
Pelos vistos, devia ser comum na unidade os carros entrarem na porta de armas de marcha atrás às tantas da noite. Ninguém ligou nenhuma. Se eu não soubesse já do que os militares são capazes mesmo em campanha se o comando abranda, era capaz de pensar que a Chiaca era um campo de férias. Mas não era. Embora com a guerrilha mais controlada que no Norte de Angola, não eram despropositadas algumas precauções. Eu alimentava uma esperança: Não me parecia que um sargento largasse um serão tranquilo para reparar uma avaria àquela hora da noite. Enganei-me. "Era o mínimo que ele podia fazer pelos amigos da Força Aérea". Ia explodindo quando vi o sorja ligar as luzes, anunciar com um largo sorriso que podíamos seguir viagem. Rosnei um dos mais violentos impropérios do meu vocabulário, com um furioso pontapé na carroçaria entrei no jipe.
Arrancámos. O primeiro-sargento correu atrás de nós. Entregou ao piloto um bocado de cabo eléctrico desfiado.- É melhor levar isto... - recomendou. Apontou a lanterna à caixa dos fusíveis, retirou um deles e explicou: - O fusível é este. Se voltar a fundir, basta colocar de novo mais três destes fios. Não ponha mais de três... Isso pode "rebentar" de vez com as lâmpadas dos faróis... Se puser menos, o mais certo é não aguentarem mais de dois minutos.
Parecia não ser preciso. Fartámo-nos de galgar quilómetros sem recorrer aos ensinamentos do sargento. Foi esse o problema: É que agora, se sabíamos estar a dezenas de quilómetros de qualquer lado, não fazíamos a menor ideia de onde nos encontrávamos. Tínhamos a mezinha, todavia: O Assunção tirou o isqueiro. Estendeu-o ao condutor, disse-lhe para o acender escondido por baixo do volante, em segundos reparou o fusível. Se aguentasse tanto como o anterior... Não durou nem dez minutos; os seguintes nem isso. Os filamentos que restavam começaram a fundir a cada volta das rodas. Esgotados os últimos recursos, acabámos parados na escuridão. Com o pressentimento de que ao passar por uma aldeia indígena, num cruzamento antes, tínhamos entrado na estrada errada, um dos soldados teve a luminosa ideia de alvitrar que estávamos a dois passos da fronteira do Congo.
Andámos um bocado em marcha atrás, parámos à entrada da aldeia.
- Vocês já ouviram falar de problemas por aqui? - perguntou o piloto.
Os dois soldados disseram que não. Não tinham tido nenhum problema no território... pelo menos não sabiam de nada por ali... Só há uns tempos, na fronteira Norte.
- Vamos lá perguntar então onde estamos - resolveu o Assunção.
Tirou a Walter do coldre, os dois soldados seguiram-no de arma aperrada. Sem saber o que faria com aquilo, preparei a FBP. Batemos à porta duma palhota, um dos soldados chamou o morador por um genérico da língua nativa.
Fiquei abismado. O ancião de cabelos brancos que abriu a porta era um europeu sem tirar nem pôr. Exceptuando a cor da pele, nada nele parecia ter a ver com as feições da generalidade dos autóctones africanos. Segurava um lampião como o que eu vira centenas de vezes na mão do meu avô; talvez sugestionado por isso, a última coisa que me ocorreria encontrar em África era alguém com tantas parecenças com o homem que me tinha criado. Compreendia e falava um pouco de português, o bastante para nos entendermos.
Sim, estávamos muito perto da fronteira, compreendemos. Entre mais umas palavras soltas, percebemos também que não estávamos em perigo... Podíamos enfim respirar fundo, talvez descansar um pouco até ao amanhecer. Quando lhe sugerimos que se fosse deitar, recusou, deu a entender que ficaria ali a alumiar-nos o resto da noite. E ficou. Ao que parecia, estava a apreciar a nossa presença. Uma boa hora mais tarde indicou uma direcção, pronunciou umas palavras. Um dos soldados arranhava o dialecto do território:- Está a dizer que vêm aí carros - traduziu ele.
Nós não ouvíamos nada. Por mais que apurássemos os sentidos, tudo quanto detectávamos era o restolhar nocturno da floresta. Quisemos saber se ele era capaz de nos adiantar mais alguma coisa. Calámo-nos todos, ninguém bulia uma palha; deixámos ao ancião a tarefa de auscultar a noite. Eram muitos carros, traduziu o soldado, de novo.
- Sim... Diz que vão passar por aqui - adiantou, depois da explicação do autóctone.
Era uma coluna militar, concluímos com grande satisfação. Agora era apenas uma questão de esperar um pouco mais. Era a minha primeira experiência com os efeitos da poluição sonora: O que nós só ouvimos quase uma hora depois, conseguia aquele homem escutar, até com pormenores, a dezenas de quilómetros de distância.
Vislumbrei na penumbra dos faróis uma série de soldados a saltarem da viatura, um outro saía da cabina na nossa direcção. Era o comandante da coluna. Perguntou o que estávamos ali fazer, dirigiu-se para mim e para o piloto:
- Mas vocês são positivamente doidos!... Sabem onde estão?... - perguntou o alferes.
Esqueceu os dois soldados. Eles não tinham nada a ver com aquilo, tinham-se limitado a cumprir ordens. Se havia responsáveis naquilo, só podiam ser o sargento-ajudante e o sargento magrinho da FBP. Era verdade: Eu acompanhara o piloto porque queria, ninguém me tinha obrigado... Se calhar, era também o que ele faria.
O alferes voltou à carga. centrou a atenção no mais graduado:
- Meu caro amigo, você esteve a milímetros de meter este pessoal numa alhada levada dos diabos... Embora não se conheçam acções da guerrilha por aqui, o gajo que vos autorizou a fazer esta viagem deve estar doido varrido. - Pôs a mão no ombro do Assunção. - Foi uma sorte do caraças você não poder continuar o caminho... mais uma meia dúzia de quilómetros por aquela estrada, vocês entravam direitinhos pelo Congo dentro.
Regressámos na coluna à Chiaca. O resto da noite passámo-la a procurar dormir em "cadeirões" de aduelas de barril. Talvez o conseguíssemos... Não fosse a "serenata" que um bode nos dedicou toda a madrugada.      Depois do suplício, os primeiros raios do dia foram uma benção. Contudo, com 27 anos na altura, minutos depois estava pronto para outra. Aquela longa noite, no entanto, ficou para sempre. É que os "apertos" de momento passam com o tempo, mas horas a fio com o credo na boca, são outra coisa... Às vezes demoram a esquecer.
AM 95 Cabinda

Texto publicado por especial deferência de Aniceto Carvalho
e transcrito do seu site "Aviação Portuguesa" http://aerodino.no.sapo.pt/index.html


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

OS FOGUETES DE CARIPANDE

Era uma missão de rotina, não um passeio, mas uma “visita”à zona do saliente do Cazombo no extremo sul, onde Caripande era farol de vigia entre Angola e a Zambia.


O capitão Carlos Acabado, fizera um pequeno briefing na véspera e combinámos que, sem um plano de voo muito rígido, seguiríamos o Zambeze até ao ponto onde o rio se escapa das chanas luenas e corre para o mar por terras que outrora foi tratado por Mapa Cor de Rosa.
Cinco e meia da madrugada , o “velho” Tomás, preparava os aviões com o amor que o especialista dedica aos seus meninos. O MMA instalou o ninho das metralhadoras . Ficavam elegantes e agressivos os T-6 “vestidos” a rigor!
Saímos da sala de operações, os aviões como destino. O Sol passeava-se fresco nas montanhas do Macondo, ansioso por dar um beijo matinal à enfeitiçada Calunda.
Em África gostava de voar bem cedo. Sentia-me no conforto de uma alvorada cheia de força , que roubava ao sol menino a pujança  do seu nascimento.
Apertei o paraquedas
Subi para o T6, sobre asa apertei o pára quedas e ajustei o capacete. No avião do lado o capitão Acabado fez em código manual o gesto de que tudo estava bem.  Entrámos na carlinga, os procedimentos habituais; motores em marcha, o silêncio feliz por despertar com o ronco do motor daquele avião, “menino” mágico de uma geração que nele bebeu a feliz experiência de voar.
Alinhados na pista em formação cerrada, tinha sido o combinado, motor em “boost” máximo, descolagem na direcção do Oeste. O Zambeze fica para trás ainda na linha de subida. Estabilizámos no nível 02, sinal para passar a formação aberta.
O Cavungo surge cinco milhas mais á frente, o pequeno quartel das forças terrestres, sobressai da sanzala.
Enquanto me afastava do avião do comandante, o pensamento escapou para a presença daquele homem. Era diferente o capitão com o equipamento de voo vestido. Não lhe deixava sobressair a cor branca de neve do seu cabelo de sempre, ao meu conhecimento.
Cavungo - foto de José Carlos Macedo
Quando o vi pela primeira vez, adoptei-o como o meu preferido. Voar com ele era sonho e desejo de todos os mais novos. O seu carácter, a sua amizade a confiança que transmitia! Naquele dia segui-o com orgulho, estava com o meu protector
.
Sempre senti um respirar de magia, quando sobrevoava o Cavungo. Ali, no seu trono de bambu, Nhakatolo rainha do povo Luena, matriarca única em todo o território angolano, fora senhora recebida em Belém por presidente português com honras de majestade. Ali nos confins do mundo, uma rainha! Um povo em veneração, uma lenda noutros povos.
--Baixar para o nível 01, transmitiu o chefe.
Descida suave para as margens do rio. Havia indícios, por informações da DGS que, trilhos de guerrilheiros africanos, poderiam estar a evoluir para o Chilombo, aquartelamento dos fuzileiros, na outra margem.
Chilombo
Como estava lindo o Zambeze naquele dia! A mata de matizes verdes múltiplos, parecia querer sufocá-lo com a candura de mãe protectora. Deslizava imponente mas sereno, tranquilo na longa caminhada até ao Índico. Olhei as águas verdes das sombras da mata, vi crocodilos sonolentos, destronados no seu poder, deslizar assustados para o fundo do rio, desconfortáveis com o ruido dos motores.
Na passagem pelo Chilombo os “fuzos”, vieram ao terreiro do quartel, abanando os braços em gestos de convite para almoçar. Mesmo sabendo da impossibilidade técnica, de se fazer uma aterragem, mostravam a sua principal característica no teatro de guerra, eram uns bons compinchas os rapazes do Chilombo!
Continuámos a acompanhar a marcha do rio, passar na Lumbala era destino obrigatório. Um abanar de asas para cumprimentar os amigos do exército, duas voltas apertadas sobre os tectos de zinco que cobriam as instalações, voltámos em direcção ao destino. Gostava da Lumbala o Cap. Acabado! Ali viveu algumas das histórias com que decorou o seu livro Kinda e outras histórias de uma guerra esquecida, obra de grau elevado na narração de humanismo, lealdade e carácter,que uma guerra também pode mostrar. 
Já li e reli, não me canso!
Chegámos ao canto Sul do saliente do Cazombo, a fronteira com a Zâmbia, aparecia qual estrada em linha recta ao longo de dezenas de quilómetros. Voávamos a cerca de mil pés acima do solo, francamente dentro do espaço aéreo angolano. Parecia  que o céu tinha aberto as portas à nossa missão. Nem um ai de turbulência, tranquilidade total. Observava o solo procurando qualquer carreiro por onde o inimigo fizesse travessia. De vez em quando via rádio, trocava palavras de circunstância com o chefe da parelha.
O canto sul - foto de Eduardo Cruz
Olhei para a carlinga do T6 do comandante. Sorridente, assinalou com o polegar que tudo estava OK. Retribuí o sinal. Quando voltei à posição normal, o meu espanto!.. Novelos de fumo por cima da minha asa esquerda davam ar de arraial em festa de aldeia.
--Numero um veja nas suas nove horas!
Acompanhei-lhe o olhar, os novelos eram cada vez em maior número…
--Paquito, siga-me… ouvi nos auscultadores!
Com um meio “tonneaux”e nariz em baixo, entrámos numa descida louca. Ouvia a voz do chefe.
--Não se afaste de mim, lá para baixo o mais rápido possível! Aquilo são granadas de anti aérea.
Estabilizámos a cerca de cem pés da copa das árvores, ali estávamos mais em segurança, fechava-se o ângulo de lançamento das anti aéreas. Seguia o chefe com toda a confiança que aquele homem me inspirava. Como já o reconheci publicamente, no lançamento do seu livro, no Instituto Cultural Verney em Oeiras, sentia-me a voar nas asas de um anjo.
--Paquito passe para a frente!
O Acabado começa numa dança frenética por cima do meu avião, numa tentativa de detectar possíveis estragos na fuselagem e asas. Na carlinga já lhe tinha comunicado que estava tudo bem.
-- Não noto nada de anormal, parece tudo OK, rumo para o Cazombo, continue à frente!
Mais tranquilo, olho para as asas procurando algum sinal de estilhaço. Na  esquerda , ainda que muito indefinidos, pareceu-me ver uns pequenos furos. Alertei o chefe, começa nova dança à minha volta, procurava vestígios de fuga de gasolina. Confirmei que pela indicação dos instrumentos estava tudo normal.
A pista do Cazombo, aparecia a cerca de dez milhas. Entrada directa na final e rodas no chão. O pessoal do AM, entretanto alertado por nós via rádio, esperava-nos com ansiedade.
Estacionámos os aviões, saí da carlinga banhado em suor. A adrenalina e o sistema nervoso, fizeram estragos. Estragos também sofreu a asa esquerda. Alguns furos de formas irregulares testemunhavam o embate dos estilhaços, sem contudo terem atingido qualquer ponto nevrálgico do avião. Um grito de alívio, a alegria vivida com abraços dos companheiros, foram bálsamo para tranquilizar. O Capitão Acabado aproximou-se, selámos abraço.
--Desta já estamos “safos”, passámos ao lado dela!
Cruzámos o olhar, sabia bem estar longe do céu!

 Foi no Alto Zambeze em Novembro de 1972.
 Por:




sexta-feira, 7 de novembro de 2014

ANGOLA, CHEGUEI !



Luanda, 23 de Março de 1970, pelas 06h00

Aquele avião de carga (DC6) tinha acabado de aterrar em terra africana, Angola.
Ao abrirem a porta, uma lufada de ar quente fez-me quase de imediato transpirar.
Quando saímos de Portugal (puto) fazia frio, por isso vínhamos, penso que todos, mais ou menos agasalhados, por isso, lá estávamos eu de farda amarela, todo bem-parecido com camisa de manga comprida, gravata e dólmen a condizer. Até parecíamos todos, (os Especialistas) gente importante. Realmente a nossa farda era bonita, chamava a atenção e isso enchia-nos de orgulho e vaidade poder usá-la, mas aquele momento preferia ter apenas uma camisa de manga curta, sem mais nada por cima...teria sido agradável.

Tal como todos, desci a escada, e pisei solo de Angola (já pela 2ªvez), já lá tinha estado muitos anos atrás, com os meus pais, vindos de Moçambique. Era ainda um miúdo com apenas dez anos, na minha primeira passagem, mas o cheiro, aquele cheiro característico da terra africana, senti quase de imediato, como se nunca de Africa tivesse saído. Esta coisa de sentir o cheiro da terra, que contamos tanta vez, a tantos que nunca lá estiveram e não acreditam, é verdade, sente-se mesmo os cheiros, os sons, os sentidos ficam mais apurados.
Entretanto lá nos meteram no autocarro da base, e fomos para aquela que seria a minha 1ª. experiência de homem livre e preso ao mesmo tempo, aquela que seria a minha casa durante alguns dias, BA9.
Chegado á Base fui apresentar-me à Esquadra de Pessoal. Lá disseram-me que o processo de colocação levava pelo menos uma semana, pelo que estaria livre, mas tendo de apresentar-me sempre na Base (E.P.) todos os dias, para quaisquer notícias sobre a minha colocação.
Depois de me ter sido dado local de alojamento, a primeira coisa que fiz foi tomar banho.
Ainda não tinha chegado ao quarto e já estava outra vez, com o corpo pegajoso tal era o grau de humidade. Cheguei a deitar-me em lençóis molhados, tal era o desconforto do corpo naquele ambiente. Apenas se estava bem num ambiente com ar condicionado caso do nosso clube.
Logo nesse primeiro dia, fui abordado por vários camaradas da especialidade, tentando convencer-me que o “bom” era ficar Luanda. Houve alguns “especiais “que me tentavam com a Esq.94. Que era a melhor de Angola, blá.. blá ..blá.. e eu sem ter qualquer voto na matéria, (lá os ia ouvindo ) e bem que gostaria, pois parecia-me que seria bom ficar por ali.
Cidade bonita com uma bela baía, muitas esplanadas, sol, praia e muitas miúdas giras, pretas, mulatas, brancas. Claro que logo por isso, era suficiente para ficar apaixonado e acreditar que ali é que eu estaria bem.
Neste entretantos de boa vida vi algumas coisas que me chamaram a atenção de forma muito particular e ao mesmo tempo intrigante. Há imagens que não nos saem da memória e estas são algumas delas.

Certo dia vejo um Especialista dirigir-se para a Porta d' Armas, com o “ar “mais desmazelado que já vira, pelo que fiquei na expectativa do que se iria passar quando a sentinela o visse.
Já tinha visto por várias vezes que todos os que saiam da base, quase se apresentavam à sentinela de serviço, este cumprimenta-los, e depois saíam. Até o Comandante, quando fardado, vi sair do carro, o que me surpreendeu muito tal atitude, pois para mim tal era impensável nas outras bases por onde andei.
Voltando ao Especialista, tomei atenção ao seu porte “aéreo” e não queria acreditar no estava a ver. Boné com a pala quase a meio da cabeça, (à reguila), os sapatos a fazerem flap,..flap,..flap,.. ou seja , as solas estavam partidas ou descoladas e um deles, na biqueira tinha um arame de frenar a segurar a sola.
Na maior das calmas aproxima-se da Porta d’Armas passa pela mesma sem que alguém, o (sentinela) o tivesse “visto”.
Não dava para acreditar!
Claro que fiz conversa disto com uns tantos camaradas, mostrando-lhes o quanto incrédulo estava e sem perceber o porquê daquele procedimento.
A resposta veio curta e seca; ó pá, era um “gajo” do AB4 de certeza. É tudo pessoal “cacimbado”, não ligam nenhum a isto,é pessoal que não “bate “certo....
Depois desta informação fiz tudo para ficar na BA9.
No dia 27 de Março apenas quatro dias de estar em Luanda, tive guia de marcha.
AB4 !

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