sexta-feira, 9 de março de 2012

A AVÓ DO CABO DINIS - Parte II

Continuação da Parte I

Foi aí, perante a perspectiva de tudo voltar ao princípio, tendo que começar de novo a equacionar o planeamento de mais um voo em condições de segurança muito reduzidas, que me veio à memória a carta que a avó do cabo Diniz escrevera ao comandante!
Nós faríamos sempre uma evacuação, um esforço e mesmo um sacrifício por qualquer camarada ferido!   Tínhamos por lema não deixar ninguém para trás, mas, muito para além disso, a carta daquela avó tocara-nos a todos os que a tínhamos ouvido ler ao comandante. Talvez por isso, veio-me o pensamento de que, possivelmente àquela mesma hora, depois da ceia comungada em família na sua casa da vila de Cucujães, a velha senhora, cumprindo uma tradição antiga, ajoelhava-se ante o oratório existente em todas as casas do nosso Portugal, sobre a cómoda do quarto mais amplo da habitação. Rezando o terço, pedia a Deus protecção para o neto, rogando-lhe que lhe o devolvesse em bem!
Parecia que esse mesmo Deus estava a delegar em nós uma parte muito importante dessa missão! A outra parte deixava-a nas mãos dos médicos que os iriam tratar e todos nós em conjunto, vivendo aquela tragédia, sentíamos que, se não estivéssemos na Sua mão infinitamente grande, jamais levaríamos a bom termo o salvamento daqueles dois jovens que, pouco mais que adolescentes, tinham confiado as suas vidas e os seus sonhos à Força Aérea que os acolhera.
Foi o Cóias que, no seu espírito voluntarioso, alvitrou que, não havendo outra solução, a partir dali, utilizando o avião " Beachcraft", um bimotor existente no aeródromo equipado com um mínimo de instrumentos permitindo o voo nocturno, poderíamos continuar a nossa missão até Luanda, onde existiam todas as condições para se aterrar de noite e em segurança!
Joaquim Cóias e Carlos Acabado
Seriam, normalmente, cerca de duas horas e meia de voo. O principal problema residia na necessidade de se alcançar mesmo a pista de Luanda, pois durante a noite não existiam aeródromos alternantes: ultrapassado um certo tempo, não se podia voltar para trás, de regresso ao Luso, por a falta de combustível não o permitir! Seria um voo sem alternativas para além do nosso destino final! Teríamos que tornar a voar através de tempestades e trovoadas que, por se formarem ao longo de uma rota passando sobre regiões de relevo acentuado, faziam com que as nuvens atingissem grandes altitudes e constituíssem como que um muro que sabíamos não poder enfrentar, mas, para chegarmos a bom termo, teria que ser contornado.
Descolámos da pista do Luso apreensivos mas confiantes! O avião que agora pilotávamos, mesmo não sendo um modelo de aeronave recente, inspirava-nos, apesar de tudo, um sentimento de segurança muito maior do que aquela que o nosso velhinho "Dornier", que nos tinha trazido a voar até ali, nos transmitia.
Introduzimos o rumo que deveríamos seguir e, depois de o altímetro indicar o nível de voo pretendido, acertámos o regime dos motores, de maneira a que, sem reduzir muito a velocidade, os mantivéssemos, como medida de precaução, no mais baixo consumo possível.
Ao longe, num horizonte que não víamos, relâmpagos projectavam-se no espaço, iluminando a noite, tornando visíveis as enormes massas escuras das nuvens que os originavam, dando-nos uma ideia da tremenda e ameaçadora energia nelas acumulada. Seria um espectáculo de uma estranha beleza e fascínio, do qual éramos observadores privilegiados se não fosse a preocupação constante de, sem nos afastarmos muito da rota, desviarmo-nos o mais possível daquelas muralhas que pareciam querer cortar-nos o caminho.
Tivemos o primeiro aviso do que nos esperava, precisamente quando o Cóias, infringindo benevolamente uma regra de segurança, acendia um cigarro e, no gesto típico de todos os fumadores, demorou por uns instantes o olhar na chama do isqueiro. O avião, sem que nos tivéssemos apercebido, devido à escuridão, entrou numa chuvada de granizo que, batendo nas superfícies metálicas da estrutura e nos vidros da cabine de pilotagem, provocava um ruído que nos dava a sensação de uma iminente desintegração da aeronave.
- Eh pá, o que é isto? - Interrogou-me, surpreendido, no tom de voz que lhe era peculiar; mas de imediato, identificando a causa do barulho, justificou-se:
- Esta merda apanhou-me de surpresa e quase que me assustou! Já um gajo não se pode distrair um segundo a matar o vício!
O médico que se tinha oferecido para acompanhar os feridos e o enfermeiro que lhes ministrava o soro, certamente julgando que o fim chegara, perguntavam em uníssono e com os rostos lívidos se o avião ia cair.    Felizmente, devemos ter apanhado apenas uma ponta do aguaceiro e o ruído assustador terminou tão rapidamente como havia começado. Só mais tarde verificamos que algumas das mossas feitas na fuselagem e no bordo de ataque das asas e hélices tinham sido provocadas por pedaços de gelo de um tamanho razoável e, pelos estragos causados, nos davam a noção do perigo por que havíamos passado.
Beechcraft
O avião, no entanto, continuava a voar rumo ao nosso objectivo, enquanto o tempo ia passando mais lentamente do que desejaríamos!
Os feridos pareciam estáveis, mantidos a soro e com as dores mitigadas devido à aplicação de morfina.
Deveríamos estar a sobrevoar a zona Sul da baixa do Cassange, quando um curto circuito, talvez provocado pela humidade introduzida nas cablagens eléctricas pelas fortes chuvadas que atravessávamos, deixou o avião totalmente às escuras, sem luzes interiores e exteriores, restando-nos milagrosamente as luzes do painel de instrumentos, a que baixámos a intensidade, reajustando os reóstatos para um tom mais suave e azulado, de maneira a que não nos cansasse tanto o olhar atento que neles mantínhamos.
O avião voava com um trabalhar redondo e sadio dos motores, sem oscilações nos instrumentos, dando-nos quase a certeza de que, pela sua parte, levaríamos em bem e até ao fim a missão que havíamos empreendido.
No horizonte escuro que tínhamos pela frente, desenhavam-se agora, ao longe, trovoadas que pareciam ter terminado já a fase de aproximação entre nuvens por cujos intervalos até aí tínhamos ido passando, para se apresentarem unidas numa frente, cuja profundidade não podíamos avaliar, sabendo apenas que, caso entrássemos dentro dela, o nosso avião não tinha possibilidade de resistir por muito tempo.
Resolvemos tentar contornar a barreira que se nos opunha, voltando quase noventa graus o rumo para Sul, por sabermos ir sobrevoar uma zona menos montanhosa e, por isso, progenitora de nuvens de menor desenvolvimento que talvez nos permitissem a passagem.
Voámos mais de trinta minutos mantendo a frente de trovoadas longe da asa direita do avião, sem que vislumbrássemos a mais ténue abertura na escuridão.
Pelo contrário, parecia adensar-se à medida que voávamos nessa direcção!
Começámos a fazer contas ao combustível de que ainda dispúnhamos, pois tornava-se evidente que havia que inverter o rumo para Norte e voar outro tanto, ou mais tempo, no caminho inverso, em que não progrediríamos em direcção ao nosso objectivo se não descobríssemos uma passagem na barreira que nos fechava o acesso a Luanda.
Foi nessa fase do voo, mantendo agora as trovoadas na ponta da asa esquerda por voarmos em direcção ao Norte, que a ambos pareceu ver uma zona menos escura que talvez nos permitisse atravessar incólumes a frente do temporal.
Ainda que nada disséssemos um ao outro e muito menos deixássemos transparecer para o médico ou para o enfermeiro que nos acompanhavam, ambos estávamos preocupados com o nível de combustível, baixando nos depósitos à medida que o tempo passava.
Continua

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