sexta-feira, 22 de novembro de 2013

EMERGÊNCIA EM SERPA PINTO, COM O DO 3413

Estamos em 1970. 
Em Março, com cerca de um ano e meio de comissão cumprida como elemento da Esquadra Operacional do AB4, sou destacado para o Cuito Cuanavale para pilotar um Dornier DO-27 de Luanda, o 3498. O mecânico (MMA) também é da BA9. A missão era dar apoio ao batalhão do exército e à companhia de Comandos lá colocada, fazendo as evacuações, reconhecimentos e transportes que fossem pedidos ao comandante do destacamento, geralmente um capitão (piloto) da esquadra 94 de Luanda. Foi um longo destacamento – desde 17 de Março a 23 de Maio – recheado de incidentes e até de um acidente rodoviário que determinou a minha evacuação e a do mecânico, o 1º Cabo MMA Carvalho da BA9, para Luanda.
Depois disso, passado cerca de mês e meio, estava havia 15 dias em Gago Coutinho quando sou de novo destacado para o Cuito Cuanavale, desta vez com um avião e mecânico do AB4. No dia 4 de Julho faço uma evacuação para o Luso e depois sigo para Henrique de Carvalho. No dia seguinte, a 5 de Julho, juntamente com o 1º Cabo MMA José Sampaio, inicia-se uma longa viagem de seis horas e meia para as terras do fim do mundo no DO 3413, com escalas em Cangamba e Gago Coutinho.
Para mim, com mais de 850 horas de voo registadas e já a pensar no fim da comissão, que estava a uns três meses de distância, tratava-se de cumprir mais uma missão numa zona que me agradava e que já conhecia bastante bem. Para além do tempo que lá tinha passado destacado com um Dornier, também lá efectuara várias operações com T-6.
O destacamento do Cuito Cuanavale em 1970 - foto de Gonçalo de Carvalho

No Cuito Cuanavale havia também um posto de rádio permanente dos primos (os sul-africanos), onde se bebiam umas cervejas e se ouvia boa música. Para o MMA José Sampaio, o Cuito Cuanavale era o seu primeiro destacamento .

Sampaio e o 3413 em 12 de Julho 1970
Depois da chegada seguiu-se um período de lazer! Só passados seis dias, a 11,  houve uma missão: um TGER ao Lupire, uma pequena localidade, a nordeste, a cerca de meia hora de voo de distância. E no dia seguinte, 12 de Julho de 1970, surgiu um pedido de evacuação para Serpa Pinto.
Tratava-se de um soldado ferido, com fractura do cóccix, que seguia em maca. Era mais um dia normal naquela guerra em que fomos envolvidos e que se traduzia no transporte de um camarada do exército para o hospital onde poderia receber tratamento adequado. O único motivo de preocupação era mesmo a saúde do evacuado.
O percurso do Cuito Cuanavale para Serpa Pinto – ou Menongue, o seu nome original – a cerca de cinquenta minutos de voo no Dornier, não apresentava quaisquer dificuldades. Toda a região é mais ou menos plana, com vegetação pouco densa e atravessada por quatro rios que correm de norte para sul. Mais ou menos a meio caminho, um pouco para a direita, existia a localidade de Longa  , junto ao rio com o mesmo nome, com uma boa pista onde já estivera várias vezes.
Pista de Longa 07Abr70 - foto de Gonçalo de Carvalho

Carta Aeronáutica usada em Angola
Depois de embarcado o ferido, que seguia em maca numa posição que não devia ser muito confortável pois estava "de barriga para baixo’, metemo-nos a caminho seguindo o rumo 305° e depois era uma questão de ir contando os rios até chegar ao destino.
Nessa altura as cartas de navegação distribuídas aos pilotos, Carta Aeronáutica do Mundo, na escala 1:1.000.000 , não tinham pormenores e praticamente só mostravam os cursos de água e as picadas mais importantes. E ajudas rádio simplesmente não existiam. Em qualquer viagem era preciso confiar que não se iriam encontrar ventos laterais fortes e que, ao fim de determinado tempo, o destino estaria à vista. As cartas que os sul-africanos levaram mais tarde para Angola, na escala 1: 500.00
0, tinham mais pormenores e colorido, permitindo uma navegação-terreno mais segura.
Carta 1: 500.000 que os sul-africanos
 levaram para Angola.
Os pormenores desta viagem estão há muito diluídos no tempo. O voo corria normalmente a uma altitude que deveria rondar os mil pés acima do terreno.  O avião portava-se bem, a mudança de depósito do combustível fez-se sem problemas e, mais ou menos à meia hora de caminho foi efectuado o reporte rádio por HF para Luanda indicando a nossa posição.
Tudo normal, aproximávamo-nos do destino sem problemas. Atrás, o ferido gemia com alguma regularidade e nós apenas podíamos dizer-lhe que já estávamos perto do destino. Por baixo o terreno ia passando, fazia-se a contagem dos rios e em breve o destino seria avistado. Corria tudo bem mas, de repente, a pacatez terminou. O motor do Dornier começou a vibrar com bastante intensidade, os ponteiros de todos os relógios a oscilar e as rotações a baixar e acendeu-se a luz avisadora de incêndio. Era uma EMERGÊNCIA.
Não me devo ter preocupado muito na altura pois já tivera várias situações semelhantes embora nunca as vibrações tivessem sido tão pronunciadas. Os motores do Dorniers por vezes pregavam alguns sustos mas geralmente tudo se resolvia efectuando alguns procedimentos. Já passaram muitos anos e a memória desses momentos não está muito fresca. Mas suponho que foram efectuados todos os procedimentos recomendados, como ligar a bomba de gasolina (ON), mudar o selector de depósito do combustível e pôr a mistura em rica. Depois, como o problema persistia, era procurar um local onde poisar o estojo, de preferência sem nos partirmos. O motor vibrava cada vez mais, com tal força que parecia que ia saltar do seu berço. E essa parte ainda está bem presente na minha memória, embora não me recorde do facto de o motor ter parado, conforme me lembrou recentemente o José Sampaio.
Ainda segundo o seu relato, mantivemos sempre toda a calma e o nosso passageiro, o ferido na maca, nem sequer terá percebido o que se passava.
Já estávamos muito perto de Serpa Pinto, onde queríamos chegar. Lembro-me bem de ter avistado uma picada à nossa frente e ligeiramente para a esquerda. Tinha algumas curvas pouco pronunciadas e do lado direito havia uma barreira. Não seria fácil colocar lá o Dornier, mas não havia alternativa. Ou será que havia? Nessa altura vi do lado direito e um pouco mais distante, uma mancha branca que me pareceu outra picada e foi para aí que decidi ir na esperança de ser uma melhor alternativa para a aterragem de emergência. Quanto a altitude pareceu-me que seria suficiente para chegarmos lá.
E assim aconteceu. A mancha branca não era uma picada mas sim a nova pista de Serpa Pinto em construção e, por ser domingo, não havia pessoal nem máquinas no caminho, apenas alguns montes de terra que não representavam grande problema. A pista estava numa fase adiantada da sua construção e, que maravilha, nós encontrávamo-nos no seu enfiamento. Foi portanto como se o Dornier estivesse numa final longa. Conseguimos chegar até lá e a aterragem fez-se sem qualquer problema, como se pode ver pela foto anexa.
O 3413 depois da aterragem com o ferido ainda no interior - foto de Gonçalo de Carvalho
O local estava deserto. Era necessário que nos viessem buscar e levar o ferido para o hospital.
Pedi ao José Sampaio que fosse até à cidade, ao quartel, pedir assistência. Era necessária uma ambulância para o ferido, transporte para a tripulação e montar guarda ao avião. Eu fiquei junto ao Dornier, fui falando com o ferido que parecia não fazer ideia do que se passava e que pedia insistentemente água. Dizia-lhe apenas para esperar um pouco e que em breve seria transportado para o hospital.
O DO já depois de ter sido levado o ferido na ambulância - foto de e com Gonçalo Carvalho
Passado algum tempo, que me pareceu uma eternidade, lá apareceram os socorros. O José Sampaio, depois do corta-mato até à cidade, ajudou a tirar o ferido do avião que seguiu depois numa ambulância e nós, depois de arrumar o Dornier seguimos para a cidade. Contactado o AB4, perante a descrição dos sintomas do motor, foi decidido a sua substituição. O Lycoming parecia ter gripado.
No dia seguinte, 13 de Julho, chega a Serpa Pinto um Dornier pilotado pelo Fur.Mil.Pil. Miguel Abecassis com o 1º.Cabo MMA António Nogueira e o Sarg. Ajudante MMA Murta com um motor operacional para o 3413. De Gago Coutinho vem um ALIII pilotado pelo Fur.Mil.Pil. José Lopes, com o 1º. Cabo MELEC Camilo Morgado para colaborar na sua montagem.
A substituição do motor foi feita pelo José Sampaio, António Nogueira e Camilo Morgado em cerca de uma semana, na pista em construção, num local ermo sob a guarda dos militares do Batalhão de Cavalaria 2870 e com o auxílio de um guincho montado num Unimog do Exército. Terão sido necessários muitos esforços e muito improvisação mas, com profissionais daquele calibre, em poucos dias o 3413 fazia os voos de experiência e estava de novo operacional.Estava resolvida a EMERGÊNCIA. Não assisti à reparação do Dornier. 
Registo do voo na caderneta - foto de Gonçalo Carvalho

De acordo com a recolecção do José Sampaio, eu terei partido para Henrique de Carvalho com o avião que tinha vindo do AB4 com o novo motor, transportando o Ajudante Murta, mas na minha caderneta de voo nada consta. Depois do dia da aterragem de emergência, dia 12, apenas está registada actividade a partir de 16, já em Gago Coutinho, o que significa que fui enviado para esse destacamento.
Relativamente ao DO 3413, o Miguel Abecassis no dia 20, já montado o novo motor, fez um voo de experiência e depois seguiu para o Cuito Cuanavale transportando a equipa que fizera a substituição: MMA José Sampaio, MMA António Nogueira e MELEC Camilo Morgado. Abecassis e Sampaio ficaram destacados no Cuito Cuanavale.
Não posso deixar de mencionar que durante o tempo que passámos em Serpa Pinto contámos com todo o apoio logístico por parte do Comandante do Batalhão de Cavalaria 2870, o Tenente-Coronel Francisco José de Morais. Inicialmente, quando o José Sampaio lhe pediu assistência em material e alojamento para o pessoal envolvido na operação, ele mostrou-se surpreendido com a juventude do seu interlocutor, mas tudo fez para que nada faltasse. Um facto estranho, no meio de tudo isto, foi estarem a construir uma pista, que seria para o novo aeroporto da cidade, sem que o piloto destacado no Cuito Cuanavale tivesse conhecimento disso. A ignorância desse facto podia ter ditado uma aterragem de emergência na picada avistada em primeiro lugar, com consequências mais desagradáveis. 
Mas o que fica para a História é que o DO-3413 deve ter sido o primeiro avião a aterrar na nova pista de Serpa Pinto e portanto posso afirmar que fomos nós que estreámos o novo aeroporto de Serpa Pinto, que agora se chama Menongue.
O centro de Serpa Pinto.( foto de Gonçalo de Carvalho)


1 comentário:

  1. Na data encontrava-me em Serpa Pinto (Menongue), onde chegara em 6 de maio de 1969 e saíra para a Fazenda Tentativa em Outubro de 1970. Na construção da pista nova e no apoio à recuperação da DO 3413 esteve o Sargento Manel Mourão Soares, da «ferrugem», e a sua plural equipa, sob o comando do Major Ló e do Cmdt Francisco José de Morais, todos, em articulação com a Companhia de Engenharia alojada no quartel comando de Sector. Fiz algumas «viagens» em DO entre Menongue (Serpa Pinto) e Cuito Cuanavale e vive-versa, não tendo memória dos nomes do pessoal da FAP mas guardando a ideia que descreves - sobrevôo à vista dos acidentes orográficos, nomeadamente os rios, picadas e povoados de que gostava de dar palpites... além de algumas «habilidades aéreas» para impressionar «maçaricos e espertalhões»... Obrigado FAP... (?)

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