sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

VIVI DUAS VEZES

Extraordinário como por vezes, algumas palavras nos ficam na memória, como gravadas 
de forma a nunca mais saírem.
No longínquo ano de 1970, no Leste de Angola, mais de quarenta anos passados, atrevo-me a relembrar de forma escrita o que sempre, mas sempre, tenho presente nos meus sonhos, e até mesmo quando estou acordado.
Sim, também quando estou acordado vivo esses momentos com grande intensidade, tal como os meus amigos e ex-companheiros, por este mundo que nos vai atraiçoando dia a dia, esquecendo tudo o que fizemos por este País, que tudo faz para nos esquecer. Bem,mas como este não é o teor destas lembranças, chega de drama, porque não é por aí, que nos vão lembrar. Somos cada um de nós que deve manter viva, através de todo e qualquer meio, a esperança de vermos os nossos filhos e netos, um dia saberem e orgulharem-se de quem fomos e nos tornamos.
Fomos heróis, fomos sobreviventes, fomos paz e fomos guerra, fomos miúdos tornados homens muito cedo. 
Fomos miúdos homens que hoje não nos honram, porque nunca o foram os que no Poder, políticos, civis e militares, generais e ministros e presidentes da República.Zeca Afonso dizia “ eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada”, e desde à quarenta anos aos dias de hoje, estes políticos, militares e outros “dizem muito mais mas não fazem nada”. Não sendo o que estava na minha mente, quando comecei este “desapontamento”, volto ao que me levou lembrar coisas boas que nos aconteceram, enquanto estávamos na flor da juventude, e os nossos ideais era vivermos o melhor possível naquela terra distante.Certo dia, não me recordo a data, partiu do Cazombo, em missão de “solidariedade”, uma formação composta pelos mais “altos dignitários” daquele A.M. para um ponto da Z.M.L., Lóvua, assim se chamava o local onde se haveria de dar um dos factos mais interessantes que vivi.

Ao aproximar-mo-nos deste Posto, o espanto marcou-me o rosto, com as imagens que me seguiam através da janela do helicóptero. Olhava para baixo pela janela do lado esquerdo e depois pelo lado direito e o meu espanto aumentava. De todas as direcções apareciam nativos, de cores coloridas vestidos, correndo para o ponto onde iríamos aterrar. Eram mil…não…dois mil e quinhentos…não, talvez fossem até cerca de cinco mil, tal era a multidão, espantoso! Cerca de cinco mil nativos (se calhar estou a exagerar) que se deslocaram de terras longínquas para apenas poderem ver os “Altos Dignatários” que se dignaram visitar aquelas terras do “fim do mundo”.
A história foi preparada pelo chefe de posto, um homem afável e simpático, de que me recordo apenas do seu apelido, Sousa, em homenagem aos sobreviventes de um acidente de avião na zona da sua jurisdição, (isso é outra estória) e, que muito o alegrou. Por isso convidou uma comitiva da F.A. para abençoar com uma bela “almoçarada”, o que (eu) apenas conhecia como um simples almoço.
O heli, pilotado pelo “enorme” Alf.Serra, trazia o também Alf. A.T. eu, e mais três camaradas, que não me recordo de seus nomes, mas éramos seis, os que viajámos no heli. Apenas o Serra ia fardado, todos os outros trajavam á civil e bem vestidos para a ocasião. Quando aterrámos, fomos recebidos apoteóticamente por toda aquela gente que se manifestava como só eles o sabem fazer, dançando, cantando e manifestando uma sensação contagiante de alegria.
Fomos recebidos com pompa e circunstância pelo administrador do posto, professor da escola, e chefes tribais. Após as primeiras apresentações (desde Governador Geral até Príncipes daqui e de acolá”, logo á saída do heli, esperava-nos uma revista às milícias em parada, com o Alf. A.T. (“Governador Geral”) , a passar revista ás tropas em parada.
A boa vontade e querer daquelas pessoas era absolutamente extraordinária, pois nessa revista, havia quem estivesse descalço, enquanto outros de botas ou alpercatas, se perfilavam de forma garbosa e altiva, independentemente do aspecto esfarrapado das suas vestes, pois cada um vestia aquilo que tinha de melhor para a ocasião.
Após estas manifestações solenes, onde até foi cantado o hino nacional, pelo meninos da escola local, (estranhamente comovente), esperava-nos um “beberete”.
Antes do almoço, enquanto bebericávamos e conversávamos, os chefes tribais (sobas) tentavam perceber como funcionava o héli, com perguntas e mais perguntas. A uma altura o A.T. fez uma proposta irrecusável aos “sobas”, ir dar uma “volta” de helicóptero. 
Assim foi.

O Alf.Serra foi o cicerone de serviço levando, penso que, dois dos “sobas” a dar uma volta. Todas as peripécias que possamos imaginar foram praticadas neste voo de baptismo. Os “sobas”, eram homens bem entrados na idade, pois seriam pessoas que teriam pelo menos 80 anos (dizia-se que um homem negro, quando pinta... três trinta, o que quer dizer que um homem com o cabelo todo branco teria pelo menos três vezes trinta anos) e estes teriam.Depois da “voltinha”, quando aterraram, vinham calmos e serenos, contra todas as nossas expectativas e mais espantados ficamos quando um deles, dirigindo-se ao “Gov.Geral”, lhe agradeceu a oportunidade e disse em dialecto local, que, depois de traduzido era o seguinte «Vivi duas vezes. Antes de andar de “zingarelho”e depois de andar de zingarelho». 
Foi uma fantástica lição de alegria e harmonia transmitida por aqueles anciãos, mostrando-nos como é feita a vida, na sua complexa simplicidade. Depois destas manifestações, de boa política, esperava-nos a mais espectacular recepção de boas vindas, num, que seria um fabuloso almoço oferecido pelo Chefe de Posto.
A sala, bem decorada e sóbria dava para um alpendre bastante largo, de vistas amplas como era normal nestas casas de Posto. Havia uma enorme mesa colocada em T com toalha imaculadamente branca, onde sobressaia o serviço dos pratos e copos de qualidade muito boa.
Quando nos sentámos naquela mesa, senti aquela sensação de que é bom viver, ter todo aquele “luxo”, naquele “fim de mundo”, fazendo-nos sentir, se bem por breve tempo, que estávamos em casa.
A refeição, composta por entradas variadas e com uma ementa de carne e peixe de que não me recordo concretamente mas composta por vários “pratos” era excelente. Servido por criados de mesa, negros, vestidos a rigor nos seus trajos brancos, dando aquela visão, como que saído de um filme dos tempos coloniais ingleses. Tudo a rigor.
Pelas 14 horas, deu-se início a este repasto que se prolongou até já ser noite.
Durante o almoço, sempre acompanhados de perto pela população indígena que se amontoava no alpendre (mais as crianças) festejava-se com cânticos e danças no exterior, abrilhantando ainda mais este evento que, viria a ser ainda mais espectacular, quando o A.T. tira da “cartola” o momento mágico da tarde, ao colocar no meio dos miúdos que nos “espiavam” no alpendre, o seu gravador de som, fazendo com que o espanto se espelhasse nas faces, ao ouvirem reproduzidas as suas vozes como que por magia. Foram tantas e repetidas as vezes que se gravaram as suas vozes e de cada vez que o fazia os seus espantos eram sempre ainda maiores. Foram momentos lindos e absolutamente inesquecíveis.


O dia foi-se cumprindo e com isso a noite foi chegando. Aquele povo não arredou pé até às tantas da noite, sempre dançando e cantando com alma de quem vive feliz, em paz consigo mesmo.
No dia seguinte aos primeiros raios de sol, regressámos à base, levando imagens que jamais serão apagadas.

Nota:
O Alf. A.T escusou-se a que o seu nome fosse mencionado.Com grande pena da minha pena, porque ele fez parte da história, e com relutância e apenas pelo respeito à sua vontade, o seu desejo é satisfeito.
Talvez um dia, quem sabe....queira dizer quem é.

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3 comentários:

  1. Anibal, terá sido no Lóvua ?
    Lóvua pertence ao Chitato-Lunda Norte, quase na Portugália.

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  2. Tenho tido alguns contactos com o então "Alferes Serra". Foi meu colega no Liceu de Leiria. Não sei se já regressou de vez do Brasil!... Era essa a sua intenção...há uns tempos atrás!...

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  3. Afinal está correcto, já verifiquei que há outra Lóvua no Alto Zambeze, relativamente perto do Cavungo (Nana Candungo).

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