sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A MÁQUINA DE COSTURA

Aquartelamento da Gafaria
Perto do Cazombo, numa povoação chamada Gafaria, existia um dos aquartelamentos de tropas Catanguesas, "FIÉIS" como eram designadas, constituídas por dissidentes e refugiados do exCongo Belga. Embora mantendo a cadeia hierárquica de Comando original, eram enquadradas por Oficiais Portugueses, desempenhando missões isoladas ou conjuntas com as tropas Portuguesas.
Logo no início do meu primeiro destacamento no Cazombo, fiquei um dia bastante admirado por ver na cantina uma quantidade de militares com um fardamento diferenciado do usado pelo Exército, a comprar tudo o que era embalagens de litro de "OLD SPICE" e na primeira oportunidade perguntei ao soldado amanuense, quem era aquela gente e o porquê de levarem todo o stock de After Shave, e Água de Colónia existentes? 
Foi-me explicado que devido às restrições, os mesmos não podiam adquirir bebidas alcoólicas, acabando todos eles a beber os conteúdos dos frascos de Old Spice, (com Álcool a mais de 40%) o que provocaria a longo prazo, a cegueira, bem como a destruição do fígado e rins, com todos os quadros clínicos negativos previsíveis bastante complicados provocados colateralmente, excepto um que era o único mensurável, (a flatulência). 
A maior parte dos seus efectivos, tinha fugido com a família para evitar represálias após a guerra do Catanga, e o pré não deveria ser de modo a sustentar um agregado familiar por vezes numeroso, mais que uma mulher e vários familiares ascendentes e descendentes, muitos deles vendiam artesanato e tudo o que sobrava dos saques ocasionais que pudessem trazer mais uns Angolares para o orçamento. 
Numa das operações conjuntas, ao fazerem a formatura após o regresso, deram como
Catanguês - foto de José Carvalho
desaparecido um Sargento dos ditos Catangueses, homem bastante experiente e condecorado, efectuadas patrulhas, não foi localizado. Passaram os dias, estávamos num fim da tarde sentados no interior do hangar junto ao nosso bar a beber umas Nocais, quando surgiu vindo dos lados da sanzala que bordejava a pista, um vulto indistinto, vergado ao peso de um grosso volume que transportava às costas, com a sua aproximação fomos vendo que o que ele transportava era uma máquina de costura "Singer" e pelo camuflado verificámos que era um Catanguês. Quando ele chegou junto de nós arreando a máquina e pedindo-nos de beber, olhámo-nos atónitos, resolvi perguntar-lhe se ele era o desaparecido à quase três semanas, ele confirmou que se tinha atrasado por causa da máquina que era uma prenda para a mulher, e depois de beber duas

Nocais de uma assentada, pegou na máquina e reiniciou o caminho da Gafaria. Todos os
presentes e os que entretanto se tinham juntado foram unânimes, "aquele não sobreviveria ao castigo" , qualquer acto cometido para além do rigoroso código de conduta, era
A Singer
severamente punido. Passaram uns dias e ao almoço os pilotos discutiam se deviam de ir ou não à cerimónia para que tinham sido convidados no Batalhão, ali ao lado, iam condecorar uns Catangueses, mas já toda a gente sabia que depois seria aplicado pela chefia Catanguesa, o castigo ao Sargento que nós víramos de máquina às costas. Conta quem viu, que perante todo o Batalhão, foram aplicadas trinta e três chicotadas, uma por cada elemento do seu pelotão, como pena de ele ter abandonado a patrulha, foi ainda despromovido com a obrigação de devolver a máquina para ser leiloada e o dinheiro da venda ser distribuído pelos restantes militares que compunham a patrulha. 
O castigo começara com o transporte às costas da máquina de costura da Gafaria até ao Batalhão... O tratamento das feridas infligidas, e os dias que passasse de baixa até estar apto ao serviço, seriam posteriormente descontados no seu pré!
Depois do sucedido nunca mais vi o Sargento, mas a imagem do seu corpo dobrado ao peso da prenda que resolvera irreflectidamente oferecer à mulher, e do posterior castigo, nunca me sairá da memória.

Cazombo, 1971 
OPC (ACO) - 71/73

1 comentário:

  1. Eu estive no Cazombo em 71, fui substituir o OPC que lá estava, o Lopo, não sei se o acontecimento foi antes ou depois da minha estadia lá ( 3 meses + ou - ), porque nunca ouvi falar disto, mas gostei de ficar a saber.

    Sérgio Durães
    OPC 70/72

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