sexta-feira, 10 de abril de 2015

A ARRASTADEIRA PRETA

A Igreja Matriz da Golegã
Em Abril de 1958, tinha acabado de fazer oito anos e brincava descuidado com outros miúdos da minha idade no adro da Matriz, quando passou um carro a alta velocidade contornando a Igreja, e da janela do lugar do morto um braço nu surgiu atirando uma nuvem de papéis esvoaçantes. 
Corremos curiosos a ver o que seria tentando cada um apanhar o maior número possível deles. Os clientes que estavam sentados debaixo dos plátanos na esplanada do Café Central, esboçaram a intenção de se levantarem e virem por sua vez verificar o que seria aquele alvoroço, quando o guarda, que estivera à janela do posto por cima da cadeia do outro lado do largo vigiando a canalha, veio a correr na nossa direcção, confiscando de imediato os papéis e obrigando-nos a jurar que não diríamos a ninguém qual era o seu conteúdo, levando a que os que se tinham levantado retrocedessem; (era ano de eleições, a 08 Junho 1958, e a única coisa que vi de relance nos papéis era que eram encimados por uma foice e um martelo).
Ainda estava-mos no local, a ser interrogados pelo Guarda Republicano, quando chegou uma arrastadeira preta de onde saíram dois homens de chapéu e fato pretos, que recolheram todos os papéis obrigando-nos novamente a jurar que não escondera-mos nenhum, nem que alguém os tivesse levado ou lido.
Em 1964, com 14 anos andava no 4º ano do Curso Industrial, em Torres Novas, e num "furo" de duas horas a que se seguia a hora de almoço, resolvemos eu e mais quatro compinchas, ir de bicicleta até ao Liceu particular do Entroncamento, onde estudavam as meninas da nossa idade que não iam para o ensino público. 
O reitor era um padre que não gostou de ver cinco maduros a rondar o gradeamento, a confraternizar e escândalo dos escândalos; a tirar fotografias com as meninas, fez um telefonema e ainda não tinha acabado o recreio e já tínhamos junto a nós "a tal" arrastadeira preta, com dois senhores de fato, gravata e chapéu pretos, a tirarem-nos a máquina e a mandarem-nos seguir a viatura. 
Sem culpa formada, fomos enfiados numa divisão com as janelas fechadas de uma
vivenda, onde nos obrigaram a entrar e onde fomos abandonados sem sequer percebermos o que nos tinha acontecido. 
Através das cartas de condução das bicicletas, telefonaram para o posto da GNR da Golegã, informando o chefe de posto que estávamos presos por provocar distúrbios e atentados ao pudor, e que só seríamos libertados quando os nossos pais pagassem a multa correspondente, deixando ao seu critério, o aviso aos mesmos. 
O chefe de posto, conhecia os nossos pais e enviou dois guardas para os notificarem, e passado pouco tempo já estavam no posto as mães aflitas da totalidade dos perigosos delinquentes. O pai do dono da máquina fotográfica, que era o "caçula" do grupo, era um industrial de camionagem, e prontificou-se a pagar a totalidade das multas, ficando o chefe de posto depois responsável pelo aviso de pagamento da importância que nos permitiria sermos libertados, e quando ao fim do dia chegámos a casa, cada um de nós recebeu o respectivo correctivo, e ainda teríamos que justificar as faltas na Escola. 
Em 1966, com dezasseis anos, o meu pai morrera um ano antes, deixei de estudar de dia e arranjei trabalho como aprendiz de soldador, numa nova fábrica ainda em construção que iria produzir pasta de tomate, estávamos na última semana de Abril e no fim de semana seguinte era o 1º de Maio, avisei o meu chefe que não podia ir trabalhar e obtive a sua autorização, mas no fim da jornada de trabalho e em conversa informal com os restantes aprendizes, deixei escapar sem segunda intenção, que não viria trabalhar no fim de semana. 
Na segunda feira seguinte, quando tentei picar o ponto não tinha cartão, e junto à guarita da portaria estava a arrastadeira preta que já conhecia de outros "carnavais", fui perguntar porque é que não tinha cartão e o segurança avisou-me em voz baixa que estava-mos todos lixados, o patrão tinha avisado a PIDE, que nenhum dos aprendizes das oficinas tinha vindo trabalhar por ser 1º de Maio, eu que me dirigisse ao gabinete do patrão que já lá estavam os outros. 
Ao chegar, fui olhado de lado, desta vez a coisa seria com certeza mais séria, fomos abrigados a permanecer calados, ouvidos individualmente, e após todos terem contado a sua versão da história, a conclusão a que chegaram foi a de que, tinha sido eu ao dizer que no fim de semana não trabalhava, que incentivara e induzira em erro os restantes, logo, fui eu que fui transportado na arrastadeira até ao Entroncamento, e enfiado na mesma divisão onde permanecera anteriormente. Notificado o meu tutor, foi este que garantiu que me pedira e eu estivera a trabalhar com ele todo o fim de semana, na tipografia de que ele era proprietário, que para tal obtivera autorização do meu chefe, e que era órfão de pai e amparo de mãe, e um miúdo exemplar e único homem da família. 
No final do dia, confirmada com o meu chefe a autorização para a ausência do trabalho, estava novamente solto, mas sob a ameaça velada que não haveria nova visita sem que tivesse de sofrer as consequências, o melhor era eu escolher melhor os amigos e não me meter em mais nenhuma confusão... 
Mudei de emprego e em 1970, já militar, acabei um curso de Comunicações e outro de
A sede da Pide
cifra
, e tive que ir à sede da PIDE, na António Maria Cardoso em Lisboa, responder e assinar um questionário e uma declaração para poder ser credenciado ao mais alto nível, isto depois de terem andado pela vila dois indivíduos de fatos pretos a perguntar pela minha conduta e amigos; depois de esperar horas sozinho numa divisão, lá preenchi a papelada e para meu espanto, apensa aos documentos, estava uma avaliação, onde estavam descritos ao pormenor, todos os episódios referidos, e a informação anotada à mão com tinta vermelha, informando da "necessidade de continuar a observação do suspeito". 
Em Angola cruzei-me várias vezes com agentes da PIDE, na altura já DGS, nos destacamentos eram visitas usuais, nunca tive de trabalhar ou socializar com nenhum deles nem o faria se fosse necessário, sabia perfeitamente que os OPC'S eram motivo de "curiosidade especial" por parte deles, o correio de casa, por vezes trazia vestígios inequívocos de ter sido aberto, haviam mensagens com origem em "informações" alertando e sugerindo que éramos drogados, homossexuais, que tínhamos relações suspeitas com civis brancos e negros, entre outras barbaridades, ainda assim, situações houve em que me senti vingado. No Luso encomendámos uma boneca loira insuflável para a morada e em nome de um dos agentes da DGS, o que deu uma bronca enorme. 
Quando estava já com a comissão acabada, fui como muitos outros, contactado por um indivíduo "desconhecido" que me quis convencer a ficar por África, com a minha especialidade era garantido que teria uma rápida ascensão na "carreira" e devido ao meu exemplar comportamento, teria a admissão facilitada... Nem me dei ao trabalho de lhe perguntar onde arranjara ele aquelas informações.
BA5 Monte Real
Declinei o convite, e até ao dia 25 de Abril de 1974, nunca mais tive nenhum episódio de nota com aquela gente, estava colocado em Monte Real, impossibilitado de sair da cifra adorei quando me contaram o tratamento que deram aos elementos da DGS local e que os tivessem enfiado na prisão da Unidade, onde o pessoal militar e civil lhes ia fazer visitas regulares, e onde alguns mais exaltados, lhes chamavam os piores nomes e lhes atiravam as mais variadas coisas pelas gradas das janelas, depois de se certificarem que eles iriam ter tudo o que mereciam por infernizarem a vida de milhares de Portugueses. 
Hoje passados quarenta anos, essa gente estará toda bem reformada, já ninguém se lembra deles e existe cada vez menos "memória colectiva" desses tempos e pelo andar da carruagem, se não estivermos alerta, novas "pides" e novas formas de opressão abater-se-ão sobre as nossas cabeças. 

OPC ACO 1970/1975

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