sexta-feira, 15 de maio de 2015

MARIA E O FILHO AFRICANO

Senhora do MNF
Quando se soube na vila que eu ia para Angola, a minha mãe foi convocada pelas senhoras do "Movimento Nacional Feminino", queriam que eu levasse um fio com a medalha de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da vila, para que nada de mal me acontecesse e eu regressasse são e salvo.
Devo dizer, que nem eu nem os meus familiares mais próximos éramos visitas regulares da Igreja, excepção feita à missa do galo.
Para receber a medalha, queriam que eu me deslocasse fardado num Domingo, assistisse à missa do meio dia, e perante os presentes o fio e a medalha seriam abençoados e seguidamente impostos para que Nossa Senhora da Conceição me acompanhasse.
Quando a minha Mãe me contou esta história, deixei bem claro que não fazia intenção de fazer a vontade a quem se mostrava tão piedosa para os que partiam para África, enquanto os filhos delas nem sequer iam à tropa ou quando isso acontecia, nunca de cá saíam, cumprindo o tempo obrigatório num qualquer serviço, de segunda a sexta com fim de semana em casa.
O tempo passou, e na véspera da data da primeira tentativa de embarque, quando o transporte militar se aproximava de casa, (era o único militar credenciado em cifra e estava sempre de serviço, mesmo na véspera de embarcar, daí a "mordomia" de me trazerem a casa), avistei uma embaixada de vultos femininos de branco à minha porta, excepcionalmente, vinham entregar-me a medalha para que eu não fosse privado dessa reconfortante companhia no outro lado do Mundo, educadamente, aceitei e agradeci a oferta e nunca mais liguei ao assunto.
No dia seguinte e em mais dois posteriores, fui à Portela e voltei, para alegria e desespero dos mais chegados, e já começava a acalentar a secreta esperança de que nunca embarcaria, quando inesperadamente me enfiaram num DC-6 e numa madrugada de nevoeiro lá parti com outros rostos desconhecidos rumo aos sertões do Leste de Angola.
O Cristo de Gago Coutinho
Desterrado de castigo para Neriquinha, num dia mais "melancólico", ao mexer na caixa onde guardava algumas recordações que me reconfortavam e acompanhavam para todo o lado, dei com o fio e a medalha embrulhados em algodão cor de rosa, a minha Mãe, à cautela, não desperdiçara a possível ajuda da outra "Mãe", que ela sabia que mesmo não passando de uma representação numa medalha de alumínio, seria a melhor aliada na tremenda luta contra todas as adversidades porque teria que passar incólume.
Passou o tempo, um dia em Gago Coutinho, desafiado pelas Freiras da Missão de São Januário, fui à leprosaria e para os ajudar comprei várias peças de artesanato, entre elas um curioso Cristo na cruz, esculpido num só pedaço de imbondeiro com algumas alterações ao Imaginário Ocidental, cravos nas mãos e pés, mas também no umbigo, simbolizados por pequenos pregos, feições de Negro, e uma cruz gravada no peito. Curioso perguntei ao homem que o fizera o porquê das alterações, e ele olhando-me com ar de espanto afirmou, Deus fez o homem à sua imagem, em África é Africano. Fiquei tão desarmado de argumentos, que não disse mais nada. Juntei o Crucifixo do Filho, ao fio e à Imagem da Mãe.
Passou o tempo e um dia partiu-se a cama improvisada com madeiras de caixas de munições e estrados, onde dormia. Com o uso foi-se deteriorando até ao momento em que se desmanchou comigo deitado nela, e foi ao tentar repara-la que me apercebi que sem um martelo nunca conseguiria utilizar os pregos necessários ao seu conserto, foi aí que ao olhar em volta espectante, vi o Cristo rodeado de recortes de jornais e revistas com miúdas despidas, pendurado na cruz, por cima da cama, e pensei para comigo, "Ele era carpinteiro,compreenderá melhor do que ninguém" peguei-lhe, e não é que tinha um óptimo balanço para martelo improvisado...
A "República" do Luso
Nunca mais deixou de ter essa dupla função, foi ferramenta essencial na construção de parte das mobílias da nossa República no Luso, e ainda hoje permanece pendurado no meu quarto de dormir numa das casas onde passo parte do ano, e como em Angola nos piores momentos, falo com ele sem segundas intensões, de homem para homem, de filho para filho, e sempre que preciso não hesito em utiliza-lo.
Como Português, herdeiro de todos os sonhos, medos, superstições e sabedoria, dos que antes de mim saíram deste pequeno rectângulo para darem ao Mundo, outros Mundos ainda por descobrir, tenho um espírito suficientemente aberto para acreditar que foi sem dúvida com a ajuda desta improvável "tríade", (fio, Medalha, Crucifixo) e sob a sua protecção que sobrevivi a meses de loucuras, maus tratos e pior comida, regressando inteiro para os braços da minha Mãe e dos que me eram queridos.



Leste de Angola 1973
OPC ACO 71/73

1 comentário:

  1. Pois ACO ainda consegues contar estas histórias deveras interssante que me fazem recordar algumas situações das quais já estou esquecido. Um abraço penso que foste comigo para HC. Também fui no DC6 e fui várias vezes ao Figo Maduro para ver se embarcava.

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