sexta-feira, 12 de junho de 2015

CARTAS DE AMOR E DE GUERRA

Por vezes o destino encarrega-se de nos pregar partidas, que nem em sonhos ousamos pensar serem possíveis.
As "instalações" de Neriquinha
Estava já à longos meses de castigo em Neriquinha, na estação das chuvas pouco mais havia que fazer que esperar pelo avião de reabastecimento de quinze em quinze dias.
Mais por dever e brio, que por necessidade, ligava rigorosamente o posto de rádio às 06:00 horas Zulo e encerrava oficialmente a permanência na escuta das frequências às 18:00 horas Zulo.
O posto de rádio com o OPC
João Francisco Soares
Quando as condições o permitiam falava com tudo o que mexesse nas duas costas do Atlântico e do Índico, e no que mediava entres elas, de Cabinda ao Cazombo, do Cuito à Beira, do Negaje a Nacala, de Luanda a Lourenço Marques, dentro e fora do horário normal de expediente, tudo servia para quebrar o isolamento. Quando o tempo estava tão mau que nem podia estar perto dos emissores, escrevia cartas à família e às minhas Madrinhas de Guerra, desde a recruta, quando eu e o "Bandarra" de quem já falei nestas (historietas) como gosto de lhes chamar, enviámos pedidos de Madrinhas de Guerra para uma revista e escreveram na volta do correio mais de noventa... todo o pelotão teve direito às suas.
Durante três anos escrevi-me com mais de uma, era bom receber correio, e poder descarregar em alguém que por não conhecer-mos tornava mais fácil a abordagem de certas matérias que eram tabu no correio para a família. Escrevia cartas muito elaboradas, com palavrões tirados do dicionário e que nunca em termos coloquiais utilizaria. 
Uma dessas Madrinhas que morava em Setúbal, pelas fotografias era uma loura com uma paciência infinita que sempre respondeu deleitada aos galanteios que eu lhe enviava, e não era para menos, quanto mais roupa ela tirava nas fotografias que mandava, mais eu me esforçava na escrita descritiva dos seus "dotes naturais" tinha uma fixação pelos meus sonhos, e eu inventava tudo e mais alguma coisa para lhe manter a chama acesa, eis um desses exemplos, contei-lhe que tinha sonhado que ela viera ver-me a Neriquinha e que durante o intervalo entre aviões tinha-mos finalmente passado do "papel" à realidade, quando ela "regressou", desgostoso, escrevi-lhe a seguinte carta:

Meu Amor,
O desterro de Neriquinha, foi quebrado e ganhou contornos de paraíso com a tua fugaz aparição, e a luz que irradiaste à tua passagem, qual cometa, como augurei começou a desvanecer-se no segundo em que cruzaste o limiar da porta do avião desaparecendo no horizonte infinito; preciso de ti desesperadamente, já não me chegam as ternas recordações, tenho uma necessidade avassaladora de te acolher nos meus braços, de te cobrir de beijos, de me anichar em ti, de te amar perdidamente e gritá-lo ao mundo ignóbil em que se tornou a minha existência, impondo este Amor triunfante à guerra e esmagando com ele a mesquinhez pérfida dos que teimam em me acorrentar aqui. Como é doloroso voltar a acordar, só, manhã após manhã, e realizar que nada mudou, que continuo aqui,
degredado, perambulando durante o dia sem um propósito, até que a noite e as sombras me cercam e dou comigo a imaginar que não vou conseguir resistir por mais tempo, enviando-te os meus pensamentos para que me guies com a tua luz e possa voltar de corpo inteiro para ti, sabendo que me irás apertar nos teus ternos braços até que os nossos corpos se fundam num só, mas abandonado e sem o teu aconchego, dou comigo a pensar quando chegará para mim o dia em que lá do alto verei Neriquinha a perder-se nas brumas do passado, com a lógica certeza de não voltar nunca mais a este local de punição, onde fui, tão dupla e dolorosamente abandonado, mas uma parte do meu coração sangrará por abandonar o local onde te conheci, te amei, e fui, efémera, mas loucamente correspondido.
Sinto-me a adejar, observando de um plano superno o outro eu abúlico em que me tornei, sem respostas para as mesmas e imperecíveis dúvidas que ciclicamente me assaltam: Afinal que faço eu aqui? Porque é que se mantém obstinadamente este exílio após tanto sofrimento? Que crime é que cometi que mereça tamanha punição? Para não enlouquecer, cogito nos dias gloriosos em que te voltarei a estreitar nos meus braços, em que te mostrarei ao mundo como parte de mim una e indivisível, e nesse futuro que ensejo breve, jurar-te-ei, a cada segundo, que ei-de amar-te uma, e outra, e mil vezes, perdidamente.

Voltei de Angola, e pouco a pouco deixei de ter motivação para lhes escrever, um dia a caminho de um fim de semana de campismo em Troia com duas amigas, dei por mim a passar pela rua onde se situava o remetente para onde enviava as minhas cartas, curioso fui vendo os números de porta até verificar que era de um salão de cabeleireira, enquanto as minhas companheiras viam a montra de uma sapataria, espreitei sorrateiramente para o interior, uma loura, atendia uma cliente, estava de costas e quando se voltou, verifiquei que era ela, a porta abriu-se e uma cabecita loura olhou para mim curiosa, percebi que aquele homenzinho seria dela, de dentro a mãe chamou-o pelo nome "Zezinho", não te quero na rua! Não tive coragem de ir desenterrar velhos fantasmas, percebi que tinha com certeza alguém que lhe escreveria cartas muito mais interessantes que as minhas, voltei à minha vida, e já começava a ter saudades dos meus tempos de tropa.

OPC ACO 1970/1975

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