sexta-feira, 4 de setembro de 2015

OS CONTOS DE JACK

JACK NÃO DISCUTIU COM DEUS

A noite escondia o espectáculo. A viatura militar estava espalhada pelo terreno carregado de arbustos e raízes como pequenas facas. Dois dos ocupantes, também feridos, estavam perdidos no escuro. Jack estava sozinho com o corpo numa estranha posição. A perna esquerda partida dobrada, estranhamente parecia estar sob as costas.

A "estrada" para a cidade 
-Jack, onde estás?- ouviu uma voz gritar. Era um dos companheiros sinistrados.
Virou a cabeça para onde estava a voz.
-Aqui! Tentei, mas não posso levantar-me – disse com uma voz que não era de todo a sua, fraca, apagada, mortal.
No ar havia um cheiro que denunciava qualquer coisa, combustível, fogueiras mal apagadas, a proximidade de uma sanzala, qualquer coisa que poderia, de repente, eclodir dentro da cabeça de Jack.
Pensava que não podia morrer. Os primeiros- socorros que chegaram, no “Jeep” da ronda, foi isso que disseram: “Ninguém morre neste estado!” Disseram-lhe para o animar. Jack já tinha pedido isso mesmo a Deus – que o não levasse - , quando recobrou do que deveria ter sido um tremendo choque no chão. Foi a mais pequena oração que Jack fizera na sua vida, até àquele dia. E nunca mais pensara no caso. Quando se está a um milímetro da Morte, pensa-se em quase tudo, menos nela. Perdia os sentidos e recobrava-os, perdia-os e voltavam, assim até chegar à enfermaria da Base militar.
- É o Jack – ouviu dizer nuns rostos esfumados dos companheiros que se juntaram para ver passar a maca, à porta da enfermaria.
-Houve um acidente lá em baixo, perto já da Vila.
- O condutor estava com uns “copos”.
-Eu disse ao Jack para não ir – retorquiu o Anthony.
- Quando amanhecer o Beech vai evacuá-lo para o hospital militar do Luso.
-Como está, não deve escapar!
Jack não discutira com Deus, não tinha tempo para isso, não perguntara “-Por quê eu?! -, aquelas frases de quem se acha com direitos divinos.
É quase sempre perto da Morte que a nossa dependência de Deus deixa de ser teológica, de confissão religiosa, e passa a ser física – foi o que Jack pensou, nos muitos dias seguintes ao que lhe aconteceu.
© João Tomaz Parreira


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