sexta-feira, 29 de abril de 2016

REPELENTE DE CROCODILO

ESTÓRIAS DE MISSÃO DE UM OFICIAL DA FORÇA AÉREA: ANGOLA – 1992

Cartoon do Autor
A situação de segurança em Luena estava complicada. Explicaram-me que havia um aquartelamento da UNITA e outro das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA) pertencentes ao MPLA fora da cidade. Cada força opositora tinha cerca de 8.000 homens, devidamente armados e municiados, o que incluía armamento pesado. As feridas da guerra civil estavam longe de terem cicatrizado em Luena e as escaramuças eram constantes. No dia em que cheguei, morreram 15 civis em Luena, vítimas colaterais destes incidentes que, em certas alturas, tinham dimensão de confronto aberto.
Pista de Luena ex AM44 Luso

No antigo AM 44 esperava-me uma pequena frota de aeronaves, constituída por três helicópteros russos modelo MI 17 e um Cessna Caravan (namibiano). Dois dos helicópteros estavam caracterizados como UN mas eram alugados à Aeroflot, o terceiro era militar e mantinha a camuflagem original do Exército Vermelho. Contava ainda com apoio pontual – a pedido – de um C-130 alugado à TransAfrik. No chão, aguardavam-me 11 tripulantes de aeronaves (10 russos e um namibiano) e 5 funcionários do PNUD (dois internacionais e três angolanos). Um dos MI 17 haveria
Cazombo AM43 em 1973,
foto de Ribeiro da Silva
depois de destacar para o Cazombo, no extremo Este de Angola (anteriormente conhecido pela tropa portuguesa como o “Quadrado da Morte”) com um oficial controlador da FA, para cobrir as necessidades eleitorais daquela remota região.
Normalmente, as tarefas de um operacional da ONU vão muito para além da descrição de funções (job description), se quiser sobreviver com o mínimo de qualidade. Os títulos pomposos que me atribuíam não me dispensavam de executar funções de apoio básico à missão. Na delegação do PNUD de Luena todos nós tínhamos uma segunda tarefa que executar para o bem comum. Enquanto uns cozinhavam e outros faziam a manutenção das instalações e aeronaves, e quem não estava a fazer nada disso tinha a nobre tarefa de buscar água para a higiene do pessoal.
Recordo a primeira vez que o fizemos. Dirigimo-nos a uma zona na margem do Rio Luena que permitia o acesso a carros. Previamente, tínhamos instalado um depósito para recolher a água na nossa carrinha de caixa aberta. Com o recurso a uma pequena bomba de extração, abastecemos o depósito. Depois dirigimo-nos a uma área mais frequentada pela população local, e decidimos dar um mergulho no rio. Fui logo avisado:
- “Comandante, isto é tudo gente boa. Se você deixar a carteira na margem do rio provavelmente não vai acontecer nada. Mas se deixar o sabão, de certeza que não vai lá estar, quando você sair da água.”
Rio Luena - foto de Armando Monteiro
A longa guerra civil tinha dificultado abastecimento de mercadorias para o interior do país, dando-se prioridade aos produtos considerados essenciais. Os artigos não essenciais pagavam-se a preços elevadíssimos Incompreensivelmente, os artigos de higiene não eram considerados de primeira necessidade, pelo que um bom sabonete era particularmente cobiçado na região. Escondi o sabonete numas ervas da margem e tomei banho de olho posto no capim. Foi um sucesso.
Meses mais tarde, já em Portugal, soube que num dos locais onde havíamos tomado banho, tinha ocorrido um incidente envolvendo um elemento ao serviço da ONU e um crocodilo. Alegadamente, durante a estação das chuvas, que estava prestes a começar em Outubro, o nível das águas aumenta bastante e entra dentro das tocas onde os crocodilos estão a hibernar, nas margens dos rios, despertando-os. Nós tínhamos estado a banhar-nos no limite entre as duas épocas, seguindo o exemplo das crianças e adultos locais. O outro indivíduo atuou isoladamente e não terá tido a mesma sorte.


(O texto e os desenhos são extratos de um projeto de livro, da autoria de Paulo Gonçalves – Tenente-Coronel TOCART – sobre “Estórias de missão ao serviço da ONU”)




Os editores do Blog agradecem ao Sr.Ten.Coronel Paulo Gonçalves, a cedência das suas estórias vividas em terras do Moxico. Vinte e poucos anos após, representando uma nova geração da FAP, os seus relatos fazem-nos retroceder no tempo e recordar algumas das vivências, que marcaram a nossa geração.Bem Haja.

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