sexta-feira, 15 de julho de 2016

LUZES DE PISTA

Cartoon do autor
Certo dia de operação na missão das Nações Unidas em Luena, fui informado que o nosso reabastecedor de combustível para aeronave passaria a voar à noite. Quando tentei coordenar o voo noturno com o diretor do aeródromo de Luena, o homem abanou a cabeça, olhou-me nos olhos e disse em voz baixa:
- “Comandante, não sei como lhe vou dizer isto, …, mas..., …, roubaram-nos as luzes de pista a noite passada. Só deixaram ficar 14 candeeiros, que estão em curto-circuito. Não podemos operar à noite!”
Era um dado novo, com impacto direto na distribuição do material eleitoral. Tentou-se negociar a vinda no meio aéreo durante as horas de luz sola. Contudo, o constrangimento do reabastecimento noturno era inultrapassável. Luanda insistia que, a partir daquela data, só iríamos receber combustível à noite, porque o aumento das necessidades de Jet A-1 contrastava com a escassez de meios aéreos de distribuição.
Numa região onde a guerra tinha destruído todas as ajudas rádio à navegação aérea e o sistema GPS estava a dar os primeiros passos, os voos noturnos de reabastecimento de combustível eram uma aventura, digna dos pioneiros da aviação. As tripulações dos C-130 da TransAfrik que faziam esses voos eram constituídas por veteranos de outras guerras, com uma grande variedade de países de origem. Todos eles eram profundos conhecedores do território Angolano, porque voavam naquelas paragens durante a guerra civil. Bombardeei o diretor do aeródromo – o senhor Pedro – com uma série de perguntas, na busca de uma solução para aquela dificuldade.
– “Não podemos receber esta aeronave à moda antiga? Fazendo fogueiras ao logo da pista?” -Perguntei.” – E combustível alternativo? Haverá Jet A-1 no Aeródromo que nos possam ceder?” – Insisti.
- “Vou perguntar ao Governo de Luena o que se pode fazer em relação a tudo isto.” - Disse o diretor do aeródromo.
O Governo de Luena entendeu não autorizar “alternativas medievais” e o voo reabastecedor foi cancelado. Ficámos curtos de combustível para todas as tarefas que estavam planeadas, e decidi diminuir os voos eleitorais, para manter a credibilidade do Plano de Evacuação que tinha elaborado. Com as restrições nos voos eleitorais, o Governo local acabou por dar acesso, a título de empréstimo, ao combustível que a Força Aérea Angolana tinha armazenado em Luena. Aquele Jet A1 estava guardado em bidões de 180 litros, colocando um novo desafio – a compatibilidade de sistemas. Após inspecionarmos os contentores de combustível, verificou-se que a única bomba de extração compatível com o bocal dos bidões era de um modelo ocidental, cuja mangueira de abastecimento não era compatível com a entrada dos depósitos dos MI-17 russos.A solução encontrada foi abastecer os helicópteros por gravidade. Ou seja, para encher os depósitos externos de cada helicóptero, tínhamos de verter 1 400 litros de combustível com o recurso a um funil. Como não confiávamos na qualidade do combustível daqueles bidões, especialmente depois da queda de dois MI-17 no Uíge, colocava-se um pano do funil para tentar filtrar o Jet A-1, o que demorava ainda mais o processo. Os miúdos que andavam na placa à cata de desperdiço de Jet A-1, estavam radiantes com o novo procedimento. Quando retirávamos combustível dos bidões para o funil, e deste para o helicóptero, entornava-se algum combustível. Nessa altura, lá estavam eles com as latas debaixo das mangueiras a aparar todas as sobras. Por vezes era irritante, mas nós tolerávamos as crianças porque era uma forma de os ajudar, e eles retribuíam fazendo pequenos recados que nos davam muito jeito.
Pista de Luena

Na tarde dia, seguinte o diretor do aeródromo contactou-me, com o semblante muito comprometido.
- “Comandante, preciso da sua ajuda. O governo vai receber uma aeronave VIP esta noite e vou ter de abrir a pista a tráfego noturno. O Comandante tinha posto a possibilidade de se fazer umas fogueiras e o Governo local instruiu-me para seguir o seu conselho. Nós temos ali uma quantidade de invólucros de projéteis de artilharia de 122 mm. Podia-se colocar um cartucho de 50 em 50 metros e meter combustível com uma torcida de pano. Mas agora, nós não temos o combustível, porque lhes demos o Jet A-1 todo…, será que nos podia ajudar?”
Evitei rir-me na cara do homem, porque não tinha culpa nenhuma no assunto.
-“Vamos a isso!” Retorqui sem ressentimentos. – “Deixe-me só dar uma satisfação ao meu chefe”.
O Chefe do PNUD em Luena desatou a rir quando lhe contei o ocorrido e respondeu-me:
- “Vamos reportar isso para Luanda. Provavelmente eles vão aproveitar para mandar o nosso combustível também.”
Efetivamente, passado pouco tempo viria de Luanda a confirmação que, se tivéssemos a pista iluminada nessa noite, deveria chegar a Luena um C-130 com 40 000 litros de combustível Jet A-1. Pedi para levarem os dois carros do PNUD para o aeródromo nessa noite; solicitei que me dessem as latas de leite em pó vazias que estavam no armazém; coordenei com o diretor do aeródromo a cedência de pessoal com enxadas; e fomos para as pistas antes do final da tarde.
- “Meus senhores, o Jet A-1 não arde particularmente bem se estiver concentrado em estado líquido. Mas se o utilizarmos como combustível para uma mexa de pano ficamos com uma belíssima tocha.” – Disse eu. –"O que iremos fazer será enterrar um cartucho de 122 mm em dada 50 passos largos, em ambos os lados da pista. No fim da pista, vamos pôr os dois carros do PNUD com os faróis e os quatro piscas ligados, voltados contra o sentido da aterragem, para os pilotos se aperceberem do final da faixa. No início da pista, vamos colocar as latas grandes de leite vazias, com um pedregulho lá dentro para não voarem. Depois vamos com o atrelado de combustível da ONU meter um bocado de Jet A-1 nas latas e nos cartuchos. A seguir vamos procurar pedaços de fardas e roupas abandonadas, que estão espalhados por aí em quantidade e que são bons para servirem de mexa. Colocamos um trapo dentro de cada recipiente e, quando a torre nos disser que as aeronaves estão em aproximação, acende-se isto tudo! Alguém tem dúvidas?” - Perguntei. – “Não há dúvidas? Vamos ao trabalho!”
O primeiro avião a aterrar foi o governamental. Um Dakota modernizado, com motores turboprop.
Na placa, à espera dos passageiros, estava uma comitiva civil e militar de peso. Eu fui para a torre para me certificar que nos avisavam da chegada do nosso C-130. Não houve muita demora entre as duas aeronaves. O C-130 chamou a torre, em Inglês, pedindo orientações para a pista. O controlador, que já me conhecia, passou-me o microfone porque não dominava a língua nem sabia das instalações que tínhamos feito. Ajudei o piloto a referenciar a pista, dando-lhe rumos para o aeródromo, baseado nas luzes de navegação do avião que podia ver à distância através de um par de binóculos. A aeronave aterrou, descarregou o precioso líquido para dentro dos nossos depósitos (bladders) e foi embora. Admito não ter gostado de trabalhar à noite, numa placa sem iluminação, fazendo de sinaleiro a um C-130 carregado de combustível, que rolava demasiado próximo de hangares, tendas, depósitos de bombas, campos de minas, etc.
Enfim, …, tudo aquilo que os manuais dizem, que não se deve fazer.


(O texto e os desenhos são extratos de um projeto de livro, da autoria de Paulo Gonçalves – Tenente-Coronel TOCART – sobre “Estórias de missão ao serviço da ONU”)



Os editores do Blog agradecem ao Sr.Ten.Coronel Paulo Gonçalves, a cedência das suas estórias vividas em terras do Moxico. Vinte e poucos anos após, representando uma nova geração da FAP, os seus relatos fazem-nos retroceder no tempo e recordar algumas das vivências, que marcaram a nossa geração. Bem Haja.

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