sábado, 3 de setembro de 2016

AS MEMÓRIAS DE UM LUENA













 A JANGADA DO LUNGUÉ BUNGO

Era um estrutura flutuante, composta por quatro fiadas de tambores, de largura e uns dez de comprido, daqueles que eram utilizados no armazenamento e transporte de combustíveis, gasóleo, gasolina e petróleo, de duzentos litros, ligados uns aos outros por uns cabos de aço, e presos, por baixo de uma estrutura de madeira grossa, que recebia a camioneta de tonelagem até dois mil quilos ou, dois Land rover, de caixa aberta. Era uma estrutura bem estudada, uma autêntica obra prima da nossa engenharia.
Este conjunto estava preso, nas suas duas extremidades do seu comprimento, a dois cabos de aço com duas roldanas nas pontas, para facilitar a sua deslocação, que por sua vez, estavam enfiadas num outro cabo de aço, mais grosso, preso às duas margens do rio, onde existiam duas enormes roldanas, uma de cada lado, que a puxavam para a margem pretendida, tarefa essa que estava a cargo de dois nativos.
Caso a jangada estivesse no lado contrário, ela teria que ser puxada para aquela e, isso obrigava a que outros dois nativos, atravessassem o rio numa canoa, para o lado pretendido. Estes quatro executantes, vivam num quimbo ali próximo, situado na sua margem direita e executavam o serviço a troca, creio eu,  de uns cem escudos. A avaliar pelo cumprimento da vara utilizada na condução da canoa, o rio era mesmo muito fundo e correntoso e a outra margem não se via.
Era por esta via que se alcançava o posto administrativo do Lutuai e, também, se podia fazê-lo pela via do Lucusse, e, uns quilómetros logo a seguir ao destacamento dos fuzileiros, junto à ponte sobre este mesmo rio, virava-se à direita para Cassamba (velha) e, mesmo à entrada desta, voltava-se, novamente à direita, andava-se para trás.
Ponte de Lungué Bungo e destacamento dos Fuzileiros

A travessia fazia-se em cerca de uma, arrepiante, meia hora. Sentia-se um enorme alívio quando se alcançava a outra margem. Cheguei a atravessá-la de noite e, também, cheguei a ouvir relatos de acidentes ali ocorridos, com a perda de viaturas, carga e algumas vidas.
Da última vez que a utilizei, pouco tempo depois do vinte e cinco de abril, quando ainda tudo andava atordoado, os tambores, tinham sido substituídos por uma enorme banheira de ferro mas, os métodos de funcionamento, continuavam os mesmos, situação, um tanto ou quanto parecida com aquela que então se vivia.

A CONSTRUÇÃO DE UMA CUBATA

Até aos meus quinze anitos, vivi muito de perto com as populações da etnia ganguela. Julgo ter conhecido muitos dos seus hábitos e costumes e assimilado, muitos deles. É um pouco desse conhecimento que eu pretendo aqui transmitir-vos. O que irão fazer com ele ou, que utilidade vos irá prestar, no vosso dia a dia, não sei, mas olhem que isto poderá enriquecer a vossa cultura geral.
Ora muito bem, a estrutura base, era constituída por pequenos troncos/mutondos, com o diâmetro aproximado de dez centímetros e com uma altura de um homem, na linguagem nativa, isto é, cerca de dois metros de altura. Estes mutondos eram aguçados numa das extremidades, para facilitar o seu enterramento no solo. Ficavam distânciados uns dos outros, cerca de dez a quinze centímetros, em forma circular, rectangular ou em quadrado, consoante os desejos do seu proprietário ou o seu estatuto social.
Eram depois ligados uns aos outros, por dentro e por fora, através de uns ramos esgaçados ao meio e atados com londovis, um atilho extraído de um arbusto rasteiro a que davam o nome de bissapa, de alto a baixo, com intervalos, entre eles, de cerca dez centímetros.
Depois, os intervalos deixados nesta estrutura, eram preenchidos com uma argamassa, de terra vermelha, misturada com capim e água e, por fim, alisada e algumas até eram caiadas.

A maioria destas cubatas eram de uma única divisão, com uma entrada. As maiores, com três divisões, mantinha a porta a meio e uma janelita em cada divisão. Não convinha terem muitas janelas ou portas, por causa do frio.
Mas, esta mesma estrutura podia ser mais económica, isto é, dispensar a ligação interior e ser revestida, exteriormente, por pequenos molhos de capim, a exemplo do tecto, como a seguir tentarei explicar.
Quanto ao tecto, seguia as mesmas regras, apenas com ligações exteriores, aonde seriam atados os pequenos molhos de capim, com uma técnica muito própria e, essa cobertura começava cá por baixo, a toda a volta da cubata e ia subindo, em forma de sucalcos, evitando desta forma a entrada da chuva e do vento. Estes telhados eram, como todos nós sabemos, em forma cónica ou triangulares, a exemplo das nossas casas.
Todos os materiais ali aplicados, provinham da mãe natureza. Eram construções verdadeiramente ecológicas. Tinham uma duração de vida considerável, aguentavam bem o mau tempo e só o fogo ou uma forte tempestade, as derrubava.

OS CAMUSSEQUELES OU BOCHIMANES

Eram uma tribo que não tinha poiso certo. Vagueava por todo o sertão angolano, em zonas áridas, nharas/chanas e pelos países vizinhos do Botswana, SWA, Zâmbia e Africa do Sul.
Viviam daquilo que a floresta lhes proporcionava, principalmente do mel, ratos, raizes e frutos silvestres.

Para quem não conhece, existia em Angola, umas abelhas mais pequenas do que as normais, que fabricavam o seu mel, não em colmeias mas, nos buracos feitos pelos roedores e era deste que eles se alimentavam.
Eram de baixa estatura, de cor acastanhada, com os olhitos tipo chinocas e falavam aos estalitos, mas também falavam outros dialectos. 
Como bons conhecedores da floresta, eram exímios caçadores, viciados em liamba e, excelentes guias.
O nosso exército utilizava-os com muita frequência, na zona leste, na perseguição dos então "turras".
Não conviviam com as outras etnias e, eram mesmo discriminados.
Eram bons fregueses do meu velhote e, convivi muito com eles, curioso de aprender a sua linguagem.

A CONSTRUÇÃO DE UM MUQUIXE

A sua base começava na cabecinha, tipo capacete, feito de pequenos e leves ramos, ainda verdes, para melhor serem trabalhados e não se partirem. Eram ligados entre si por londovis.
A partir daqui, ao capacete eram adicionadas outras formas, tudo feito com pequenos e verdes ramos, pelo motivo já apontado e ainda por causa do seu peso. Das formas podiam nascer um cone, do tipo, unicorne, que tinha a designação de tchicunza, com dois ou quatro arcos, em forma de lua ou, simplesmente, o capacete.
Muquixe em cerimónia da Mucanda
Depois, esta estrutura era toda revistida e ajustada com uma espécie de sarapilheira, também conhecida por tchilondos, que era extraída de uma árvore e toda ela cozida à mão, de forma a obter as formas pretendidas. O interior do capacete também era bem revestido para não magoar e era preso por baixo do queixo. O rosto era todo revestido de cera derretida para lhe dar realce à cavidade dos olhos e da boca e, depois, pintado de cor branca, preta, vermelha, às pintas, às riscas, em pequenos círculos, com barros extraídos da margem ou do próprio rio. Eram mesmo muito bonitos, cheguei a dominava a sua construção e alguns deles, chegaram mesmo a ser exibidos em público.
A par disto, todo o corpo era revestido com uma espécie de renda artesanal, muito bem trabalhada, onde sobressaiam as cores preta, vermelha e branca.
À cintura levavam uma espécie de saiote, feito de sisal, com duas ou mais voltas e, nos tornozelos, uma espécie de guizos.
Ao som do batuque e, em movimentos ritmados e cincronizados das ancas, das pernas e dos pés, o artista, rodeado de mulheres, batendo palmas cantando e gritando, dava vida ao saiote e, levantava poeira.
Estas danças tinham vários interveniente, em simultâneo e a festa durava todo o dia. Também eram revesados. Poderão imaginar o esforço dispendido pelos artistas.
Isto acontecia, normalmente, no fim da mucanda que, no próximo artigo, irei abordar.
Eu era mesmo muito entendido nesta arte, se lá tenho ficado, tinha o meu futuro assegurado.

A CONSTRUÇÃO DA MUCANDA

Começo por vos confessar que nunca entrei em nenhuma e, o que vos vou descrever, é um testemunho de um dos nossos colaboradores, mais conhecidos por serventes, que a frequentava.  Era um local onde apenas os circuncisados tinham acesso, algo afastado dos quimbos e, normalmente, à beira de um curso de água, todo ele cercado e revestido com capim, para o tornar mais acolhedor, com umas palhotas para albergar os responsáveis e acompanhantes, todos eles lungas/homens. As crianças circuncisadas dormiam ao relento, à volta da fogueira, despojadas das suas roupas, ficavam todas nuas.
O termo MUCANDA, também quer dizer, carta/escrita.
Rapazes da Mucanda

O acto propriamente dito, o corte do kinhunga, do tapa chamas, como eles gostavam de falar, ou do prepúcio, era executado a sangue frio, sem qualquer anestesia, com uma navalha bem afiada, manejada por um homem experiente nestas lides. Os garotos eram segurados pelos adultos. O enfermeiro só era chamado, em casos de infecção.
No final de alguns meses, com a ferida já cicatrizada, era organizada uma festa de arromba, com batucadas e a dança de muquixes que durava todo o dia. No final deste evento, aquelas instalações eram destruídas pelo fogo.
Depois deste acto, as crianças eram consideradas adultas e, a casa que então partilhavam com os pais, deixava de nela poder entrar e, por isso, no decurso desta estadia, era-lhe construida uma cubata.
Mas as mulheres, também, tinham a sua mucanda. Quando à rapariguinha lhe vinha a sua primeira menstruação, ela era desflorada e, o método, segundo contavam, era também violento e consistia na introdução na sua vagina um pau afiado na ponta, ao contrário do que ainda hoje acontece na Guiné em que lhes é extraído o clitóris.
Sofria também um retiro de alguns dias do seu ambiente familiar e também,  se tornava adulta com moradia própria.
Custa-me a acreditar que este acto, tenha alguma coisa a ver com a impossibilidade de estas crianças ou jovens , serem desvergindadas, de forma natural, pelos seus pares, por estes possuirem um grande pénis que não se alterava com a excitação.
Na nossa linguagem vernácula, quer ele estivesse teso ou murcho, o tamanho era sempre o mesmo.
Mas era isto se servia de explicação para tal violência.

Fiquem bem e móioué.


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